Ouça este conteúdo
A perseguição religiosa não para no Brasil, e parece que grande parte da mídia vibra quando um religioso é calado, como no caso que vamos comentar a seguir.
Em maio do ano passado, o IBDR emitiu um longo parecer sobre a sentença proferida nos autos da Ação Civil Pública 1068617-64.2015.8.26.0100, que tramitava no Tribunal de Justiça de São Paulo, e que opunha a ONG Abcds Ação Brotar Pela Cidadania e Diversidade Sexual e o deputado federal Marco Feliciano. A ação tratava da repercussão de um controverso evento ocorrido durante a Parada Gay de São Paulo de 2015, protagonizado pela ONG citada. Durante o desfile, a atriz Viviany Beleboni desfilou crucificada como Jesus Cristo, em um protesto contra a homofobia. Posteriormente, Feliciano usou seus perfis nas mídias sociais para expressar críticas associando a imagem da atriz a eventos anteriores, gerando polêmicas e ofensas. A ONG, sentindo-se difamada, buscou reparação por danos morais coletivos, requerendo uma indenização de R$ 1 milhão. Após uma reviravolta no parecer do Ministério Público, que inicialmente se posicionava contra a ação, o deputado foi condenado a pagar R$ 100 mil.
O caso prosseguiu com o recurso de apelação do deputado, resultando na transferência do processo para a Justiça Federal (no caso, o TRF3) e na apresentação de uma Reclamação Constitucional ao Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa reclamação, Feliciano argumentou pela anulação da condenação com base em decisões vinculantes que protegem a liberdade religiosa, especificamente citando a ADO 26. A Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer apontando deficiências processuais, mas o mérito ainda aguarda decisão do STF.
A parte dispositiva da ADO 26, da qual foi relator o ministro Celso de Mello, garantiu:
“A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.”
As liberdades religiosa e de consciência, fundamentais e vinculadas à dignidade humana, são reconhecidas internacionalmente e no ordenamento jurídico brasileiro
O direito fundamental à liberdade religiosa, conforme definido pela ADO 26, abrange, para as religiões abraâmicas, a repreensão de práticas consideradas heréticas, sacrílegas e blasfemas, tanto de forma privada quanto pública. A proteção constitucional à comunidade LGBTQIA+ não exclui a expressão pública da liberdade religiosa, abrangendo diferentes orientações, desde progressistas até fundamentalistas. Contudo, o paradigma estabelece um limite claro: o discurso de ódio, caracterizado por discriminação, hostilidade ou violência, sujeito ao critério trifásico de Norberto Bobbio, como sedimentado na jurisprudência brasileira, inclusive no STF – no caso, o RHC 134682, julgado na Primeira Turma em 2016, com relatoria de Edson Fachin:
“O discurso discriminatório criminoso somente se materializa após ultrapassadas três etapas indispensáveis. Uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.”
Contrariando relatos midiáticos, a Procuradoria-Geral da República não emitiu parecer contrário ao processo em si. O parecer abordou questões processuais, como a necessidade de uma “aderência material estrita” entre a demanda e o paradigma invocado. O mérito ainda será decidido pelo STF, mas, mesmo se o parecer for acolhido, o processo seguirá no Tribunal Regional da 3.ª Região para julgamento, podendo retornar ao STF. Quanto ao cerne do caso, surgem alegações de perseguição, levando a uma análise mais aprofundada sobre os motivos por trás desse episódio.
Liberdade religiosa e liberdade de consciência
As liberdades religiosa e de consciência, fundamentais e vinculadas à dignidade humana, são reconhecidas internacionalmente e no ordenamento jurídico brasileiro. Estas convicções profundas moldam a compreensão da vida e guiam as ações conforme os preceitos da fé e da consciência de todos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos respalda essas liberdades nos artigos 2.º e 18, assegurando ao cidadão a capacidade de confessar sua fé e expressar suas crenças, proibindo a intervenção estatal que restrinja essa manifestação, princípio reafirmado pela Constituição brasileira. Esses valores, pilares duradouros nas nações civilizadas, não se limitam à adoração em locais sagrados, sendo a liberdade religiosa considerada a “Primeira Liberdade” de importância inquestionável. Sobre essa liberdade, Rui Barbosa disserta, em Secularização dos Cemitérios, que “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa”.
O direito à liberdade religiosa encontra-se expresso no artigo 5.º, incisos VI e VIII, da Constituição Federal. Nesse sentido, escrevemos em nosso livro Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas: “A dignidade da pessoa humana deve ser o norte da aplicação do Direito em nossa nação, sendo ele um dos fundamentos do Estado Democrático e da República Brasileira (art. 1.º, III, da CRFB/1988). Assim, todos os princípios constitucionais devem se confrontar com a dignidade da pessoa humana, para, então, conformarem-se com ela”.
A liberdade de consciência abrange as convicções mais profundas do ser humano, incluindo aspectos religiosos, morais, ideológicos, filosóficos e políticos, situando-se em uma esfera íntima inacessível a intervenções de entidades públicas ou privadas. Essa fortaleza é o cenário do encontro singular e decisivo do indivíduo consigo mesmo. Embora conectadas, a liberdade de consciência e a liberdade religiosa são distintas, sendo a primeira a expressão interna e a última, a externalização desse foro íntimo. Consciência e religião, inseparáveis, compartilham conteúdos interligados e convergentes.
A liberdade religiosa, vital para preservar a dignidade humana, reflete a identidade e perspectiva de vida, morte e além, fundamentando-se na escolha e adesão às crenças religiosas. Esta liberdade abrange todas as dimensões individuais, incorporando deveres para com dogmas religiosos. A verdadeira liberdade religiosa vai além da proteção à crença interna, incluindo a liberdade de expressar e praticar essas crenças, isto é, o exercício da crença, o action to belief. Restringir condutas religiosas expõe a liberdade religiosa a ameaças, comprometendo a autêntica expressão da religiosidade na sociedade e limitando a liberdade do indivíduo em agir conforme suas convicções religiosas.
A intolerância religiosa
Desrespeitar ou distorcer os valores e crenças de uma religião, ou pior, silenciar sobre esses princípios é uma afronta à dignidade da pessoa humana e à liberdade religiosa. A fé, sendo intrínseca e fundamental para a identidade humana, naturalmente suscita sentimentos de ofensa quando desconsiderada. É crucial manter um equilíbrio respeitoso entre direitos quando um invade a esfera do outro, especialmente quando se trata do direito de crer, garantindo a preservação dos direitos fundamentais e a ordem democrática.
Restringir condutas religiosas expõe a liberdade religiosa a ameaças, comprometendo a autêntica expressão da religiosidade na sociedade e limitando a liberdade do indivíduo em agir conforme suas convicções religiosas
No caso em questão, a expressão artística, ligada aos protestos contra a homofobia, desviou indevidamente um símbolo sagrado para a fé cristã, a imagem de Cristo crucificado. Isso evidencia uma violação substancial do direito à liberdade religiosa e de fé, pois o protesto, ao modificar o significado da Paixão de Jesus Cristo, não envolvia questões religiosas, mas apropriação indevida de um símbolo sagrado cristão, e em razão disso o deputado se manifestou e fez sua crítica.
Para o cristão católico, por exemplo, toda a santidade e perfeição de alma consiste em amar a Cristo, “que veio salvar o seu povo dos pecados e santificar todos os homens”. A meditação do amor a Cristo, o qual veio à Terra, fez-se homem e “acendeu o fogo do santo amor nos corações dos homens”, é, para a tradição cristã, vivenciada através da Paixão de Jesus Cristo. Como muito bem disse o IBDR em seu parecer citado no início:
“O caminho sagrado percorrido por Cristo desde o pretório de Pilatos, onde foi condenado à morte, até o Calvário, onde foi crucificado, é o período em que o fiel avança no amor divino, que sofre e derrama as lágrimas pelo amor de Jesus Cristo na Cruz. Assim, evidente que a utilização da crucificação de Cristo, a qual foi interpretada por uma mulher, para atos diversos dos religiosos, modificando a simbologia e os detalhes inseridos na cruz, é, além de intolerância religiosa, blasfêmia. Atitude que desrespeitou a imagem e os objetos considerados sagrados para a fé cristã e sacramentais para o catolicismo.”
Uma sociedade pluralista e inclusiva, além de democrática, depende do respeito às posições divergentes, especialmente no que diz respeito à fé e à crença. Utilizar símbolos religiosos para chocar, desvirtuando seu verdadeiro significado, é desrespeitar a fé, atacar o âmago do ser humano e violar o princípio da dignidade da pessoa. A encenação da Paixão de Cristo, conforme os preceitos religiosos, das mais variadas formas, não constitui intolerância religiosa, mas a apropriação do símbolo de Cristo crucificado para protestar contra a fé cristã configura clara afronta à fé e à tolerância religiosa, e desrespeita publicamente atos cristãos.
A tolerância religiosa é crucial para garantir os direitos fundamentais, notadamente a liberdade de crença e religião, promovendo uma coexistência plural e inclusiva no espaço público. Mesmo que a tolerância religiosa não exija a aceitação das crenças de uma religião específica, é essencial respeitar esses valores para evitar ofensas à liberdade religiosa e prevenir a intolerância religiosa, que contradiz os princípios democráticos e agride a dignidade da pessoa humana.
A encenação da crucificação de Cristo pela atriz Viviany Beleboni, como forma de protesto contra a homofobia e outras discriminações, é considerada, em tese e sob o ponto de vista jurídico, um ato intolerante e vilipendioso. Essa ação ofende a fé cristã, distorcendo o verdadeiro significado da crucificação de Cristo e caracterizando-se como blasfêmia, um ato que insulta e desrespeita a divindade ou elementos sagrados. Vale ressaltar que o termo “blasfêmia” tem origem religiosa, e em um Estado verdadeiramente laico o Judiciário não deveria intervir nessa esfera, uma vez que a definição de blasfêmia é uma questão religiosa e o Estado laico não deve se envolver em interpretações teológicas. Essa é toda a irresignação do deputado Marco Feliciano.
A ofensa ao sagrado é agressão ao foro íntimo do indivíduo, é desrespeito à sua identidade, é “atacar a sua fé no sagrado é solapar a sua dignidade de ser humano”, como ensinamos em nossa obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas.
A imunidade parlamentar
Por fim, mas não menos importante em uma democracia, não podemos esquecer da imunidade parlamentar. A imunidade parlamentar, assegurada pela Constituição de 1988, garante aos parlamentares inviolabilidade por suas opiniões, palavras e votos, preservando a liberdade de expressão no exercício de suas funções. Essa prerrogativa, tanto processual quanto material, é fundamental para o Estado Democrático de Direito, permitindo que os parlamentares representem as vozes da população que os elegeu.
O parlamentar expressou sua defesa do sentimento religioso, alegando a violação dos fundamentos de sua fé e de milhões de brasileiros diante do vilipêndio a símbolos religiosos
Todo o caso envolve manifestações do parlamentar Marco Feliciano em meio digital e no Congresso Nacional sobre o aviltamento de símbolos religiosos por grupos LGBTQIA+ em eventos de protesto. O parlamentar expressa consternação diante da profanação pública de símbolos cristãos, sem proferir ofensas individualizadas. Ele destaca a intenção crítica em relação a eventos públicos que ultrapassam a liberdade de expressão ao desrespeitarem a fé cristã.
Em um Estado Democrático de Direito e uma sociedade pluralista e inclusiva, com ampla proteção constitucional às liturgias religiosas e com um ordenamento jurídico que criminaliza o vilipêndio a atos ou objetos de culto religioso, qual deveria ser a posição do parlamentar? As suas manifestações são parte do exercício legítimo de suas funções, especialmente ao representar eleitores de vertente religiosa.
Ademais, as críticas do parlamentar, embora contundentes, não configuram animus injuriandi ou caluniandi (nestes casos, sim, deveria haver punição), sendo direcionadas à defesa dos direitos da sociedade, principalmente daqueles que compartilham valores cristãos. Destaca-se que a inviolabilidade parlamentar impede a responsabilização penal ou civil, e a ausência de animus injuriandi ou caluniandi afasta a necessidade de reparação civil por danos morais, mesmo diante de comentários ofensivos associados à postagem do parlamentar.
Conclusão
O fato é que o parlamentar expressou sua defesa do sentimento religioso, alegando a violação dos fundamentos de sua fé e de milhões de brasileiros (80% deles, talvez?) diante do vilipêndio a símbolos religiosos. Contrariamente ao parlamentar, a manifestação artística supostamente ultrapassou os limites, resultando em episódio de intolerância religiosa, possivelmente e, em tese, configurando o crime de vilipêndio público, conforme o artigo 208 do Código Penal.
A decisão do juiz de primeiro grau é questionada por punir a vítima do ocorrido, desconsiderando os princípios da liberdade religiosa, de crença, de expressão e da imunidade parlamentar. Tal atitude não apenas cerceia a principal atividade pela qual um cidadão é eleito, mas também representa uma clara violação à manifestação da liberdade religiosa.
Quando o Estado sanciona alguém que exerce sua atuação baseada em crenças pessoais, e mais ainda quando esse indivíduo é investido do poder da palavra por mandato constitucional, o desrespeito torna-se ainda mais evidente. Isso reflete a preocupante expansão da perseguição religiosa, atingindo até mesmo membros do Legislativo, o que levanta questionamentos sobre o espaço restante para a expressão do povo em geral.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos