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Em 2019, assistimos atônitos ao Supremo Tribunal Federal criar o tipo penal do crime de homofobia. Digo “atônitos” pelo instrumento – o julgamento de uma corte constitucional – para, atropelando o processo democrático, atuar como legislador. Arrisco dizer que esta situação é sem paralelo em todas as doutrinas de Direito Penal dos países de tradição jurídica do chamado direito codificado, ou civil law, como é o caso do Brasil.
Isto porque – qualquer acadêmico de Direito sabe – a competência de definir o que seja ou não crime é exclusiva do Poder Legislativo. Uma expressão que sempre foi usada nesta área, inclusive para mostrar segurança jurídica (o que chamamos Estado de Direito), é a de que “não há crime sem lei anterior que o defina”. Como fica a estabilidade das instituições democráticas se o Poder Judiciário, que não representa a vontade popular, passa a criar tipos penais livremente? Na verdade, não fica. E foi exatamente o que aconteceu na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, em que os ministros do STF criaram o tipo penal da homotransfobia, com exceção à liberdade religiosa. Esta “exceção”, porém, deixou duas portas escancaradas para muitos abusos possíveis.
A primeira porta é direta: os religiosos podem adotar e defender suas regras de fé e prática desde que não se caracterizem como “discurso de ódio”. Assim sendo, os ministros resolveram que este discurso será punível, mesmo sob o manto de uma alegação de fundamento religioso. Porém não houve uma definição do conceito e do alcance desta expressão, deixando-a vaga e ao sabor das ideias, afetos e (pre)conceitos de qualquer magistrado.
Já a segunda, igualmente perigosa para todo o sistema de proteção aos direitos fundamentais e à democracia em si, é que a decisão não excepcionou a liberdade de expressão. Como exercer a liberdade religiosa (uma liberdade-fim) sem sua liberdade-meio que é, exatamente, a liberdade de expressão? Foi justamente esta situação que ainda está em discussão nesta ação (sim, o processo ainda está tramitando e este “crime” ainda não está em vigor), por meio de embargos de declaração opostos pela Advocacia-Geral da União, além de outros amici curiae (“amigos da corte”, entidades representativas que têm interesse legítimo na temática e figuram como auxiliares especializados no julgamento). O recurso está já pronto para ser apreciado pelo relator, o ministro Nunes Marques.
Como fica a estabilidade das instituições democráticas se o Poder Judiciário, que não representa a vontade popular, passa a criar tipos penais livremente? Na verdade, não fica
Aqui, um disclaimer: nós absolutamente repudiamos toda e qualquer violência contra homossexuais e transexuais, seja física ou verbal. Reconhecemos que, assim como outros aspectos da vida em sociedade, há no Brasil uma politização que opõe gratuitamente as pessoas, como se a “comunidade religiosa” fosse uma antítese da “comunidade LGBTQI+”. Esta tentativa de “dividir para conquistar” é tática manjada, e não podemos nos calar diante de violações a direitos fundamentais de todos os brasileiros. Temos este dever para com esta e as futuras gerações. E nosso papel fica ainda mais difícil quando a violação dos direitos parte justamente da instituição que deveria ser a guardiã suprema destes valores basilares, da Constituição.
O poder tem muitas faces. O político tem pelo menos três, a partir da definição clássica de Montesquieu: o Legislativo, Executivo e Judiciário. E notem que há uma ordem de apresentação justamente em torno da proximidade com que estas se ligam à fonte do poder, que é o povo. Os últimos 250 anos da civilização ocidental têm sido bastante movimentados. Crescimento exponencial de pessoas, conflitos não mais regulados por instituições antes definitivas (Roma locuta causa finita est já foi uma forma bem eficiente de terminar com discussões), e o senso de igualdade como o grande graal do Estado ao resgatar a “democracia” dos gregos sob valores republicanos são os corolários da iluminação do homem moderno.
No entanto, como as coisas não são tão simples (nem novas debaixo do sol; quem tem olhos para ver veja), estes conflitos encontram difícil solução na mesma medida para todos. Quanto mais dificuldade, mais soluções ou tentativas são feitas. Neste contexto é que o Judiciário anda se metendo para tentar ser protagonista quando seu papel sempre foi mais de estrutura com discrição. Ao avançar na competência do Legislativo e atuar como “fazedor” de leis, atropela a vontade do povo – que não o elegeu – e o processo político como um todo, que tem um ritmo, uma liturgia e uma lógica diversa da jurídica. Nascem assim as violações.
Mas, no nosso caso, em quais aspectos? Violações às liberdades acadêmica, científica, jornalística, profissional, de opinião, de expressão e, inclusive, religiosa. A forma como o tipo penal de homotransfobia foi construído pelo STF acabou por criar a inédita situação de termos um “tabu” em torno do tema. Qualquer um (e nós, aqui, flertando com o perigo!) que assumir uma posição sobre o assunto que pareça questionadora, mesmo sob esses ângulos acadêmicos, jornalísticos etc., correrá o risco de ser processado, condenado e preso. Na situação específica da exceção à liberdade religiosa, como já dissemos acima, o fio da navalha será verificar ou não a existência de “discurso de ódio”. Mas quid est esse tal discurso?
Se formos perguntar ao “ofendido”, a resposta será muito subjetiva. Há tantos graus de sensibilidade no termômetro das emoções – e das manipulações pessoais (e mesmo algorítmicas) – que um critério objetivo se torna a única forma de haver alguma segurança jurídica. Os ativistas, por exemplo, sempre terão uma escala de alerta absoluto e qualquer crítica soará ofensiva. E é neste momento em que as tensões se esticam, os grupos buscam a tutela e o Judiciário aceita entrar nesta equação em que as coisas ficam sem a baliza que deveriam ter. Perdemos o senso de razoabilidade e de proporcionalidade, os elementos legítimos para a ponderação de direitos fundamentais em nosso sistema constitucional. Será que qualquer crítica deve ser encarada como um ato de ódio?
O denominado “hate speech” acontece quando determinada afirmação, escrita ou verbal, tenha como objetivo principal discriminar ou diminuir a vítima em razão de suas características étnicas, raciais, religiosas, sexuais e, no âmbito da ADO 26, orientação sexual ou identidade (ideologia) de gênero. Em outras palavras, o discurso de ódio é aquela afirmação que promove discriminação baseada na raça, religião, etnia ou nacionalidade – como explica Michel Rosenfeld em Hate speech in constitucional jurisprudence: a comparative analysis –, ou orientação sexual ou identidade (ideologia) de gênero.
O que vemos hoje em dia, inclusive com ações concretas do Ministério Público Federal, é a tentativa de enquadrar pregações religiosas fundamentadas em suas crenças e dogmas como discurso de ódio
Há dois elementos básicos em seu núcleo: a discriminação e a externalidade. O efeito está ligado à violação dos direitos fundamentais da vítima. Ou seja, não se trata, simplesmente, de “palavras que ferem”, pois se assim fosse não seria diferente de simples ofensa e, pela subjetividade das relações, qualquer discussão ou afirmação poderia ser enquadrada como hate speech. Na verdade, as relações humanas seriam inviáveis, pois é natural da vida em sociedade a discordância, muitas vezes até de forma truculenta. O núcleo do discurso de ódio está obrigatoriamente vinculado com a discriminação. E a discriminação está conectada com o desprezo por pessoas que compartilham de alguma característica que as torna componentes de um grupo e, em razão disto, são tidas como inferiores e indignas da mesma cidadania dos emissores da opinião.
Por outro lado, não podemos esquecer que a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, garante que toda a pessoa tenha “liberdade de pensamento e de expressão. Este direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha” (artigo 13).
Logo, ao pensar e teorizar sobre o hate speech precisamos sempre levar em consideração o primado constitucional das liberdades de expressão, pensamento, consciência e religiosa, dentre outras. É necessária, para a caracterização do discurso de ódio, a ponderação de interesses e a construção dos limites de tolerância em razão das peculiaridades de cada caso, sob pena de ser restringido e violado tal primado. O próprio STF já se debruçou sobre este tema, concluindo, no RHC 134682, de relatoria do ministro Edson Fachin, que o crime de ódio via discurso somente pode incidir quando superadas três etapas: a) constatação fática de que os seres humanos são desiguais; b) afirmação de superioridade sobre os diferentes e c) defensa da eliminação, escravização ou supressão dos direitos fundamentais do desigual.
Entretanto, o que vemos hoje em dia, inclusive com ações concretas do Ministério Público Federal, é a tentativa de enquadrar pregações religiosas fundamentadas em suas crenças e dogmas como discurso de ódio, isso ao mesmo tempo em que já virou lugar comum dizerem que o religioso é um ignorante ou que pastores são ladrões (é recorrente lermos isso nos comentários a vários dos nossos textos aqui mesmo na coluna). Mas, se alguém disser – mesmo no ambiente de um culto – que a prática homossexual é um pecado e discorrer a respeito, pode ser chamado a comparecer a inquéritos civis ou criminais, mesmo perante o Ministério Público Federal (o “fiscal da lei”), às custas do dinheiro dos pagadores de impostos: nós.
Parece que estão criando uma mordaça, melhor, um tabu, por meio da nova expressão da moda: “discurso de ódio”. O que fazer? Aceitar a mordaça e calar ou lutar pela democracia, pluralismo político e pelos direitos civis fundamentais? A dignidade da pessoa humana deve ser a baliza, sempre. Não se pode nem se deve discriminar quem seja, pelo que seja, também em matéria de sexualidade. Mas também é inadmissível que se use o pretexto da discriminação para calar o debate entre posições diversas a respeito de assuntos que estão longe de ser unanimidade na comunidade humana, entre eles também a sexualidade. E isto especialmente quando a base da discordância tem a ver com o imperativo da consciência por motivo religioso, sempre nos limites do respeito e da urbanidade. Lembrando do “profeta” Orwell e sua Oceania, deixemos aqui nosso legado: não à patrulha do discurso!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos