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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

"Abuso" inventado

Conselhos tutelares e a moralidade religiosa na educação brasileira

Em Curitiba, conservadores se articulam pelo grupo "Tias do Zap", com representantes em Santa Catarina.
Mais de 30 mil novos conselheiros tutelares foram eleitos em todo o país no último domingo. (Foto: Luiz Costa/Divulgação/Prefeitura de Curitiba)

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Neste primeiro domingo de outubro, ocorreram em municípios de todo o país as eleições para conselheiros tutelares. A mobilização conservadora e de muitos candidatos evangélicos surtiu efeito nas urnas, havendo cidades nas quais grande parte das vagas foi preenchida por candidatos desse espectro. O pastor Renato Vargens publicou em suas redes sociais que 70% dos eleitos são conservadores e, destes, 50% eram evangélicos. Isso chamou a atenção da sociedade como um todo, sendo destaque na mídia.

No entanto, a questão que se levanta é se essa mobilização e os resultados favoráveis aos conservadores nas eleições de conselheiros tutelares configuram um “abuso de poder religioso”. Essa tese tem sido bastante mencionada durante pleitos eleitorais desde as últimas eleições para o Executivo e Legislativo federal e estadual, em que os cristãos no Brasil começaram a se mobilizar para eleger candidatos que defendem pautas conservadoras, especialmente em relação à família e à educação.

Neste particular, é sempre importante lembrar que a cidadania (fundamento da República, conforme o artigo 1.º, II, da Constituição de 1988) somente se efetiva quando todas as liberdades civis fundamentais, as liberdades políticas e os direitos sociais se encontram no espaço público em pé de igualdade. A realização do bem comum é direito e dever de todos os que participam da pólis; neste “todos”, também a religião é chamada a dar a sua contribuição, seja na manutenção dos seus direitos de crer (incluindo manter, mudar ou deixar de ter fé) e de exercer a crença (expressão, proselitismo, ensino, apologética, culto, assistência e organização), seja na ordenação que estes cluster rights (“feixes de direitos”) operam em todo o sistema de pluralidade (efetivando assim o artigo 1.º, V, da Constituição, o pluralismo político). Além disso, a liberdade de opinar – inclusive de apontar candidatos a cargos públicos com o perfil axiomático desta parcela da população – é garantida pelo artigo 3.º, IV da Constituição, quando se tem como objetivo na República perseguir a promoção do bem geral, sem preconceitos e discriminação.

Ainda que não exista regra legal para tipificar o “abuso de poder religioso”, a eleição para os Conselhos Tutelares trouxe de volta uma tentativa de equiparação com os abusos previstos em lei, como os abusos políticos ou econômicos

É importante observar que, embora essa mobilização religiosa tenha chamado a atenção, não há previsão de “abuso de poder religioso” na legislação eleitoral brasileira. A lei aplicável dispõe sobre hipóteses de abuso de poder econômico, abuso de poder político, abuso de autoridade e abuso dos meios de comunicação, com base na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90). Essa regulação tem o objetivo de combater abusos e condutas que possam desequilibrar a disputa entre os candidatos.

Ainda que não exista regra legal para tipificar o “abuso de poder religioso”, e, portanto, não possa haver enquadramento dessa suposta prática em quaisquer eleições, incluindo as dos conselheiros tutelares, o que está ocorrendo é uma tentativa de equiparação com os abusos previstos em lei, como os abusos políticos ou econômicos. Um exemplo disto é a Resolução 231, de 28 de dezembro de 2022, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que dispôs sobre as regras eleitorais para a escolha de conselheiros tutelares, trazendo esta figura legalmente inexistente de “abuso do poder religioso”. Diz o artigo 8.º, §7.º, VI, da dita resolução:

“Art. 8.º A relação de condutas ilícitas e vedadas seguirá o disposto na legislação local com a aplicação de sanções de modo a evitar o abuso do poder político, econômico, religioso, institucional e dos meios de comunicação, dentre outros.
VI – abuso do poder religioso, assim entendido como o financiamento das candidaturas pelas entidades religiosas no processo de escolha e veiculação de propaganda em templos de qualquer religião, nos termos da Lei Federal 9.504/1997 e alterações posteriores;”

A regulação administrativa do Conanda dá a entender que existe esta figura de “abuso de poder religioso”, tanto que o texto usa a expressão. Porém, a remissão legal que faz ao Código Eleitoral Brasileiro (Lei Federal 9.504/1997) não dispõe de nenhuma hipótese deste item. Ou seja, considerando o momento em que foi expedida a resolução (no último dia útil do ano, em governo de transição), mostra-se uma guinada ideológica no sentido de ter a religião como elemento hostil à influência da esfera pública, tentando encontrar um espaço de laicismo para diminuir a força do nosso modelo de laicidade.

No contexto da laicidade colaborativa brasileira (artigo 19, I, da Constituição), em que a moralidade religiosa é reconhecida como parte legítima do debate público, é fundamental entendermos a importância de respeitar a diversidade de opiniões e crenças. O Brasil é uma nação plural, e sua democracia se baseia na representação democrática de seus cidadãos, independentemente de sua orientação religiosa. O respeito à diversidade e a convivência pacífica entre diferentes visões de mundo contribuem para a identidade do Brasil como uma nação amigável e aberta ao diálogo.

As polêmicas suscitadas em torno do tema, quer pela mídia, quer por militantes de esquerda, acabam por lançar questões sobre o próprio papel do Conselho Tutelar. Afinal, por que é tão “perigoso” que o conservadorismo tenha influência sobre este assunto? A própria Constituição diz que a educação é direito de todos e dever da família e do Estado. Os conselhos são instrumentos para auxiliar a ambos – família e Estado – no pleno desenvolvimento dos futuros cidadãos. O que nos leva a lembrar do princípio sobre o qual esta visão do texto constitucional foi escrito: o da subsidiariedade.

Diz o Estatuto da Criança e do Adolescente que estes gozam de direitos fundamentais, inclusive ao “desenvolvimento espiritual”. Não há razão para se questionar a indicação de conselheiros que sejam identificados por valores morais ligados a tradições religiosas

O princípio da subsidiariedade é um conceito fundamental em diversas áreas, incluindo filosofia política, teologia social e governança. Ele postula que as funções sociais devem ser exercidas, preferencialmente, pelas instituições mais próximas das pessoas afetadas por essas funções, de forma descentralizada, e que as instâncias superiores só devem intervir quando as inferiores não conseguem cumprir adequadamente suas responsabilidades. Esse princípio tem origens na Doutrina Social da Igreja Católica e foi amplamente desenvolvido pelo papa Leão XIII na encíclica Rerum novarum, publicada em 1891. A encíclica abordou as questões sociais da época, especialmente as condições de trabalho e a justiça social, e defendeu a ideia de que o Estado e outras instituições deveriam intervir na sociedade apenas quando as famílias e as comunidades não pudessem atender às necessidades de seus membros de maneira adequada.

No contexto político e governamental, o princípio da subsidiariedade implica que o governo central deve delegar responsabilidades e poderes às autoridades locais e regionais sempre que possível. Isso permite uma governança mais eficiente e eficaz, pois as decisões são tomadas por aqueles que estão mais próximos das questões e das pessoas afetadas por elas. A subsidiariedade também valoriza a autonomia e a participação das comunidades locais na tomada de decisões que as afetam diretamente.

Além disso, o princípio da subsidiariedade é frequentemente invocado em debates sobre políticas sociais e assistência. Ele sugere que a ajuda e o suporte social devem ser oferecidos primeiro pelas famílias, organizações não governamentais e comunidades locais antes de o Estado intervir. Isso promove a responsabilidade individual e a solidariedade entre os membros da sociedade.

Ou seja, há elementos morais importantes na formação educacional de crianças e adolescentes. E os agentes públicos – eleitos pelo próprio povo – que vão auxiliar neste desenvolvimento também têm parcela de responsabilidade neste processo. Afinal, diz o Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 3.º, que estes gozam de direitos fundamentais, inclusive ao “desenvolvimento espiritual”. Logo, não há razão para se questionar a indicação de conselheiros que sejam identificados por valores morais ligados a tradições religiosas. Não no Brasil.

Portanto, à medida que discutimos o papel dos Conselhos Tutelares na educação e a influência da moralidade religiosa na política brasileira, é crucial lembrar que as eleições devem ser conduzidas dentro do quadro legal existente, que não inclui a categoria de “abuso de poder religioso”. Em vez disso, devemos promover o diálogo construtivo e respeitoso entre todas as partes, reconhecendo a diversidade de opiniões e crenças que compõem a tapeçaria da sociedade brasileira.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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