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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

O deus agora mudou de nome: chama-se “ciência”

Testes de coronavírus
Testes de coronavírus no Paraná. (Foto: Divulgação/Fundação Araucária)

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A pandemia de Covid-19 realmente surpreendeu o mundo todo. Muitos governantes, sem saber como lidar com a situação, tomaram medidas drásticas e, em vez de restringir as liberdades das pessoas conforme a necessidade, simplesmente decretaram proibições, muitas vezes sem medir as consequências de tais ações e, principalmente, a sua eficácia. Muitos esqueceram que a política é arte do possível e que a vida humana não pode ser tratada apenas levando em consideração as leis biológicas. O ser humano vive em comunidade: do trabalho, das ideias, da crença, da localidade e da família. Leis, mesmo que extraordinárias, que restringem ou impossibilitam que o homem viva nestas comunidades são problemáticas porque atacam exatamente aquilo que nos diferencia dos animais irracionais: o pensamento e o relacionamento racional.

Uma das comunidades que sofreu com tais medidas foi a da crença. Para alguns a crença pode ser exercida em casa e de forma individual, mas, para a maioria dos fiéis, não é bem assim: a comunhão com outros irmãos e irmãs de fé é parte integrante do sagrado e sua proibição resulta em violência ao íntimo dessas pessoas. Em outras palavras, uma violência ao que faz delas pessoas. Por outro lado, ao “zapearmos” as redes sociais nos deparamos com alguns posts, geralmente da “galera” da geração Z, que louvam toda e qualquer proibição, clamam em alta voz pela ciência e criticam aqueles que ousam discordar do assim chamado “novo normal”. O fundamento republicano do pluralismo político que implica na possibilidade de se ter voz no espaço público (ou seja, de discordar da maioria ou da minoria) também deve ser restringido, como se alguém pudesse contrair o novo coronavírus pelo simples fato de postar uma discordância ao governo do dia ou da infalibilidade da ciência, como se ela fosse a verdade absoluta, o novo “Eu Sou” – o novo Deus do século 21.

Pensando nisso, resolvemos entrevistar o professor e pastor Franklin Ferreira, diretor-geral do Seminário Martin Bucer, em São José dos Campos (SP), presidente da Coalizão pelo Evangelho, cujo conselho formado por pastores e presbíteros, fornece direcionamento, liderança e resguardam a visão teológica deste ministério no Brasil, e secretário-geral do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).

"A academia preza tanto o contraditório e não poderia, com o apoio da grande mídia, silenciar o debate, pois isso é mortal para a própria ciência."

Franklin Ferreira

Qual sua posição acerca da possibilidade ou não de harmonizar os ensinos das Escrituras Sagradas com os comandos oriundos dos aspectos tidos como científicos da pandemia?

Como cristãos, aceitamos que “o mundo [...] é como um livro formoso”, e valorizamos a ciência exatamente porque ela representa a descoberta do que chamamos de leis físicas e químicas (e da interação destas) que Deus colocou no universo. Assim, acreditar na ciência não significa aceitar que uma pessoa ou instituição nacional ou internacional tenha o monopólio da interpretação dos dados, nem o direito de absolutizá-los como se fossem a última palavra, sem admitir dissonância. A academia preza tanto o contraditório e não poderia, com o apoio da grande mídia, silenciar o debate, pois isso é mortal para a própria ciência. É possível discordar e ouvir discordâncias com elegância, sem ridicularizar um dos lados. Mas, por recebermos a Bíblia como “sagrada e divina Palavra [de Deus]”, cremos somente em Jesus Cristo e no seu evangelho, de quem virá a salvação última. Por essa razão, encorajamos nosso povo a orar por aqueles que são instrumentos de Deus para o bem comum, tanto autoridades civis como cientistas e profissionais da saúde. Nossas orações são para que aqueles que trabalham para encontrar e definir melhores políticas públicas encontrem estratégias de prevenção e, sobretudo, uma solução definitiva para a pandemia.

Como exemplo pessoal, entre os dias 14 e 15 de março, o conselho da igreja que pastoreio decidiu suspender os cultos públicos, passando a oferecer sermões, oração e música on-line. Um outro exemplo: o Seminário Martin Bucer, do qual sou diretor, decidiu no dia 15 de março que todas as aulas seriam transmitidas on-line até o fim do ano.

O senhor tem se manifestado sobre a necessidade de o fiel ser prudente em seus atos nestes tempos de pandemia. O que significa isso à luz da Bíblia?

A Bíblia ensina que a prudência é filha da sabedoria. Isso significa que a postura do cristão não é norteada por credulidade ou incredulidade, arrogância ou desprezo. Pelo contrário, diante de um discernimento cuidadoso da realidade e das vítimas da pandemia, o cristão é chamado a atuar com maturidade, habilidade e bom julgamento. Em outras palavras, o cristão não brinca com vidas humanas. Se há risco de infecção e morte, é necessário, da parte do cristão, estar pronto a agir por amor ao próximo. A partir dessas ênfases, a Coalizão recomendou o discernimento e a prudência, diante das propostas conflitantes que procedem dos diversos setores do campo político, ao mesmo tempo em que entendemos ser muito importante seguir e respeitar as recomendações mais elementares de distanciamento social e as normas sanitárias básicas.

Entre março e maio, publicamos 26 textos relacionados com a crise gerada pela pandemia. Em março, nosso blog teve um aumento de 307% nos acessos em comparação ao mês anterior. Mais recentemente, os acessos cresceram 550% (a título de comparação, o blog da Coalizão na China experimentou crescimento de 115% e 450% nos mesmos períodos). Provavelmente, tamanho engajamento se explica por deixarmos de lado o debate político em torno da pandemia e priorizarmos o cuidado com as pessoas.

No começo da pandemia a Coalizão pelo Evangelho emitiu uma nota pública que criticou o “endeusamento da ciência” como balizador do enfrentamento da pandemia. Qual a intenção da nota e desta afirmação?

A expressão “endeusamento da ciência” foi empregada por Mario Cortella, em 7 de janeiro. Mas seu uso em nossa nota gerou várias críticas de setores da esquerda e extrema-esquerda, que tentaram rotular os membros da coalizão de “negacionistas”. Mas, por exemplo, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, afirmou que “a ciência é a luz, é o Iluminismo, é através dela que nós vamos sair. Apostem todas as suas energias na ciência. Não tenham uma visão única, não pensem dentro da caixinha”. De uma perspectiva cristã, tal frase é um exemplo de idolatria da ciência. O que argumentamos é que também precisamos de cautela diante das palavras dos especialistas, pois temos visto peritos de vários setores importantes da ciência divergirem radicalmente sobre o mesmo tema.

Se há grandes benefícios recebidos da ciência – como o raio X, a penicilina, o motor a vapor, a prensa, o avião, o telégrafo, a eletricidade, a vacina para a poliomielite, o Programa Apollo –, também devemos ter em mente que cientistas estiveram envolvidos com os campos de concentração e com a invenção do Zyklon B, com a pesquisa e desenvolvimento de guerra biológica e química e experimentação humana letal na Unidade 731, com o Projeto Manhattan e o desastre nuclear de Chernobyl. É sempre bom lembrar que a noção de que a ciência é um saber puro e neutro, livre de pressupostos sociais, econômicos e políticos, é um mito.

"Também precisamos de cautela diante das palavras dos especialistas, pois temos visto peritos de vários setores importantes da ciência divergirem radicalmente sobre o mesmo tema."

Franklin Ferreira

Voltando ao caso em questão, Demétrio Magnoli, em artigo publicado na Folha de S.Paulo de 25 de abril, já tratava do “Fetiche da ciência [que] serve para políticos fugirem à responsabilidade por suas decisões”, usando como exemplos atores dos vários campos do espectro político. Ele diz: “A ciência faz descrições e, no limite, formula hipóteses probabilísticas sobre o futuro”. Após citar exemplos contraditórios de governantes do Sul, Sudeste e Nordeste que “enchem a boca para dizer que suas decisões sobre a emergência sanitária fundamentam-se ‘na ciência’”, ele afirma: “O fundamentalismo epidemiológico (‘evitar contágios’) pode ser tão desastroso quanto a negligência criminosa (‘uma gripezinha’)”. A postura de cautela de Magnoli pode ser contrastada com a ingenuidade dos que acham que a salvação final virá da ciência, como se esta fosse um bloco uniforme de saber. Infelizmente, uma frase de nosso documento serviu para que extremistas dissessem o que não afirmamos.

Estamos próximos do fim dos tempos? Existe consenso entre os evangélicos de que o apocalipse se aproxima?

Esta opinião não é, de forma alguma, consensual entre os evangélicos. A partir do século 19 surgiram posições teológicas mais pessimistas quanto ao fim dos tempos e estas posições se tornaram uma corrente dominante entre muitos evangélicos. Muitas vezes, ligados a esta posição, alguns segmentos evangélicos foram estimulados a buscar nervosa e ansiosamente sinais que, por suposição, apontariam para uma volta iminente do Messias. Em contraste, há também segmentos conectados às igrejas oriundas da Reforma Protestante que apresentam uma postura mais cautelosa quanto à “especulação dos sinais”. Ora, nenhum cristão negaria que sinais precederão a volta do Filho de Deus, mas entende-se que estes serão incrementados e ocorrerão simultaneamente, na véspera da volta do Messias, que será visível e única. Como diz a Bíblia, “todo olho o verá”, quando o Messias voltar “com poder e muita glória”.

Evangélicos e Ciência, este binômio é possível?

Dos séculos 16 a 19, por causa da noção de que “toda a verdade é verdade de Deus”, muitos evangélicos estiveram intensamente envolvidos com os desenvolvimentos e descobertas científicas. Muitos dos membros da Sociedade Real de Londres eram protestantes. As universidades de Yale, Harvard e Princeton foram fundadas por congregacionais e presbiterianos. Mas, na medida em que os evangélicos, de forma geral, aderiram a uma visão pessimista da história, passaram a abandonar as várias áreas do saber e as esferas que compõem a sociedade. Adentrou em alguns setores do meio evangélico uma mentalidade anti-intelectual, que passou a ver com suspeição o estudo científico e acadêmico. Ainda que esta postura possa ser, em certa medida, popular, muitos evangélicos, sobretudo aqueles conectados às igrejas históricas, permanecem servindo em universidades e contribuindo para o desenvolvimento científico. Por exemplo, entre 1901 e 2000, cerca de 65% dos ganhadores do prêmio Nobel eram cristãos ou tinham formação cristã. Um testemunho impressionante da influência duradoura da fé cristã no campo das ciências.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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