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Crônicas de um Estado laico

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Entrevista

Existe “racismo religioso” no Brasil? Uma conversa com Patthy Silva

Batuque de Umbigada, Batuque Paulista, Tambu ou Caiumba. (Foto: Maria Eugenia Tita/Wikimedia Commons)

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No último dia 21 de março foi criado, pelo Decreto 11.446, o “grupo de trabalho interministerial, no âmbito do Ministério da Igualdade Racial, com a finalidade de apresentar proposta para o desenvolvimento de Programa de Enfrentamento do Racismo Religioso e Redução da Violência e Discriminação contra Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Povos de Terreiros no Brasil”. Dentre as atribuições deste grupo, que funcionará no âmbito do Executivo federal, estão as de:

“Art. 2º (...): I – realizar diagnóstico da situação de racismo religioso no Brasil, de modo a identificar sua extensão em números, suas formas de manifestação e a gravidade das condutas que o caracterizam;
II – elaborar relatório sobre os efeitos socioeconômicos dos atos de racismo religioso nas comunidades e nos territórios afetados;
III – avaliar a efetividade da atual legislação de enfrentamento ao racismo religioso e de garantia da liberdade religiosa no país; e
IV – apresentar proposta de Programa de Enfrentamento do Racismo Religioso e Redução da Violência e Discriminação contra Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Povos de Terreiros no Brasil.”

Este tema é sensibilíssimo. Tanto pela vertente envolvendo o racismo quanto ao elemento religioso. Por isso, nosso corte aqui é ver a mistura dos dois temas, uma vez que a religião conversa com a cultura (embora não seja a cultura) e molda a essência dos povos. Por isso há muitos aspectos a serem abordados, e este texto serve como uma introdução a uma ampla discussão que iremos fazer aqui na coluna sobre o tema.

Sob o ponto de vista jurídico, o crime de racismo é tipificado no artigo 20 da Lei 7.716/1989. Crime inafiançável e imprescritível. Ao longo dos anos, outras condutas foram sendo equiparadas ao conceito étnico que usa as expressões “raça”, “cor” e “etnia”, para incluir também “religião” e “procedência nacional” (introduzidos pela Lei 9.459/1997).

“Eu ousaria dizer que o cristianismo é mais africano que a umbanda, que nasceu como dissidência do candomblé no início do século 20 na cidade de São Gonçalo (RJ). O cristianismo, por sua vez, tem raízes africanas desde o século 1.º .”

Patthy Silva, comunicóloga e pedagoga, em pós-doutoramento em Sociologia.

Mais recentemente, a Lei 14.532/2023 alterou a Lei de Racismo, criando uma equiparação entre a injúria racial (a ofensa direta a alguém) ao racismo em si (a ofensa difusa a um grupo indeterminado de pessoas). E no §2-B incluiu a equiparação a quem “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”. Ainda, o artigo 20-C desta lei explica o alcance interpretativo da lei, dizendo que

“Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.”

Neste momento queremos apenas expor os diplomas legais para que o leitor conheça o material tal como se encontra. Iremos explorar este assunto juridicamente no decorrer do tempo. Para agora, convidamos uma comunicóloga e pedagoga, em pós-doutoramento em Sociologia pela UFRJ, onde pesquisa evasão escolar entre meninos negros, sob supervisão da professora doutora Felícia Picanço. Também estuda feminismo e relações raciais de forma independente. Produz conteúdo para as redes sociais sobre os assuntos citados anteriormente. É a querida Patthy Silva, dona do perfil @pretaderodinhas. Como sabemos, há todo um debate em torno da captura identitária deste tema. Por isso ousamos fazer algumas perguntas a ela.

Fala-se muito em um conceito chamado “racismo estrutural”. O que é isto? Há um consenso a respeito do tema?

A teoria do racismo estrutural foi introduzida no debate público brasileiro pelo professor Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos. A teoria tem a proposta de extrapolar o conceito de racismo institucional, que já é bem estabelecido no meio acadêmico desde os anos 1980.

O cerne do conceito de racismo estrutural é o seguinte: o racismo está na estrutura da sociedade, de maneira que todos os indivíduos são racistas de alguma forma, por um impulso da estrutura. Há um aparente consenso entre os intelectuais brasileiros sobre essa teoria, mas, felizmente, algumas vozes estão representando o dissenso e discordam da perspectiva do autor. Uma dessas vozes é o intelectual progressista Jessé Sousa, professor da UFABC, que em livro publicado em 2021 aponta falhas na teoria do racismo estrutural, considerando-a uma petição de princípio.

O que você pensa a respeito da equiparação da discriminação religiosa equiparada ao crime de racismo?

Não vejo com bons olhos. O ativismo negro entende que a intolerância religiosa sofrida por umbandistas e candomblecistas é fruto de racismo. Contudo, essa intolerância pode ser fruto também de disputa de mercado religioso. É sabido que, em comunidades, várias denominações do protestantismo defendem seu monopólio e, se possível fosse, fariam o mesmo movimento de ataque contra o catolicismo. Porém, os católicos ainda são maioria no Brasil; estrategicamente falando, é mais difícil atacar um grupo majoritário.

Penso que é igualmente complicado entender intolerância religiosa sofrida por umbandistas e candomblecistas como racismo religioso pelos seguintes motivos: a) a maioria dos fiéis dessas religiões é branca; b) o cristianismo também é uma religião de matriz africana.

Eu ousaria dizer que o cristianismo é mais africano que a umbanda, que nasceu como dissidência do candomblé no início do século 20 na cidade de São Gonçalo (RJ). O cristianismo, por sua vez, tem raízes africanas desde o século 1.º, sendo a Etiópia um dos maiores baluartes da cristandade do mundo. Por alguma razão, aqueles que falam em racismo religioso ignoram a história do cristianismo em África e ignoram o fato de que 55% dos católicos brasileiros são negros; esse índice fica absurdamente maior quando consideramos o número de evangélicos.

“A pauta racial, assim como outras pautas sociais, deveria ser suprapartidária. Combate ao racismo é uma pauta que interessa aos grupos humanos, independentemente de ideologias.”

Patthy Silva

Qual o efeito da nova lei que iguala a injúria racial ao racismo? E no campo religioso, quais suas considerações?

Eu não sou especialista em legislação. Ao que me parece, a nova lei torna a injúria racial um crime tão inafiançável como o racismo. Teremos de aguardar para ver os primeiros resultados disso.

Como seria a forma mais justa para abordar este tema tão sensível em nossa sociedade, considerando as polarizações e cooptações ideológicas existentes?

Percebo que um lado político utiliza o racismo como moeda de troca para a maioria de suas demandas. O outro lado político, por sua vez, insiste em fingir que racismo não é problema nacional, minimizando sua importância. Para mim, ambos estão errados. A pauta racial, assim como outras pautas sociais, deveria ser suprapartidária. Combate ao racismo é uma pauta que interessa aos grupos humanos, independentemente de ideologias.

Como é o campo progressista que domina essa discussão no Brasil, é justo e necessário que o campo opositor participe dessa discussão com seriedade, abandonando a vontade de reproduzir memes e ridicularizações sobre o assunto; é hora de mostrar que o conservador brasileiro tem princípios e valores sólidos e que não é um grupo apenas de reação à esquerda.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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