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Há muito tempo se travam debates sobre a possibilidade de a Igreja (aqui no sentido amplo das organizações religiosas como um todo) “se meter” na Política, entendida como o pensamento sobre as coisas da polis, e na política com “p minúsculo”, a política partidária.
Pelo artigo 19, I da Constituição, a laicidade colaborativa brasileira obriga o Estado a tratar com respeito e benevolência a religião, e esta tem autodeterminação para, de acordo com suas fontes doutrinárias e sua norma de oração (lex orandi e lex credendi), determinar o quanto entende ser importante avançar no campo da representação de seu pensamento perante a arena pública. Isto é, na política partidária, é parte da liberdade religiosa que as agremiações se entendam protagonistas ou não. Já na Política enquanto fenômeno social é imprescindível sua participação, pois é isto que garante o pluralismo que está no artigo 1.º, V, da Constituição de 1988.
Certamente vivemos, ainda, refluxos do Iluminismo iniciado na França revolucionária, que resolveu matar Deus e tudo o que dele fizesse memória (além de quase 200 padres na Bastilha), em nome da emancipação humana. O século 19, por sua vez, foi aquele em que a humanidade, uma vez “libertada” das amarras religiosas, pôde gerar experimentos dos mais variados. Um deles foi o nascimento dos teóricos coletivistas, que geraram novas formas de visão do mundo e governo político, a partir, principalmente, de estudos avançados de Karl Marx e tantos outros.
Vivemos, ainda, refluxos do Iluminismo iniciado na França revolucionária, que resolveu matar Deus e tudo o que dele fizesse memória, em nome da emancipação humana
A Igreja Católica, por sua vez, embora empurrada de protagonista a observadora social, manteve-se fortemente ativa na produção teológica, inclusive na atividade dos papas quanto ao que estava acontecendo (e o que poderia advir) desta aventura perpetrada por quem tinha tido a audácia de zerar o calendário mundial e reiniciar a contagem da história. Desta observação paciente surgiram pérolas teológicas como a conhecida encíclica Rerum Novarum, editada por Leão XIII em 1891. Este documento lançou luzes para como a Igreja Romana deveria enxergar a vida em sociedade, lançando princípios que hoje são a base da nossa Constituição, como o primado do trabalho, a subsidiariedade e a busca do bem comum.
Os protestantes, por sua vez, viram-se em muitas disputas internas em seus corpos eclesiásticos por conta do liberalismo teológico que ganhou terreno a partir dos teólogos “iluminados”. Este movimento buscou passar a Bíblia e a teologia pelo funil do método científico e suas ramificações nas novíssimas ciências sociais. Com isso, introduziu-se nos seminários o método histórico-crítico de investigação teológica, que basicamente buscou racionalizar (ou seja, medir) a revelação de Deus nas Escrituras.
Em vez do Deus pessoal e interessado na história humana como um todo e, em particular, na vida de cada um, tal método tende a um “deísmo”, um Criador que, depois de deixar sua obra bem-acabada, não tem mais razão para interferir no tempo e espaço. Assim, não há por que se crer em uma Queda, uma Encarnação virginal, uma morte vicária e uma Ressurreição corpórea, entre tantos outros desdobramentos. Este método também acaba lendo de maneira identitária as Escrituras, como um relato de “oprimidos e opressores”, a partir da dialética filosófica de Hegel que o marxismo expandiu para alargar horizontes e possibilidades políticas. Ou seja, fora do racional só existe o mero misticismo que não tem lugar na arena pública.
Eis aí um apertadíssimo resumo do nojinho de alguns diante de igrejas que prezam pela ortodoxia teológica, que não aderiram a este método, mas usam o histórico-gramatical, discutindo Política. Este método preza pela revelação tal como foi recebida, aceitando a possibilidade de interferências sobrenaturais do Deus Trino na história, sendo Ele o seu definitivo protagonista.
E é aí que entra a polêmica. O Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil, uma das maiores denominações protestantes históricas do país, vai se reunir em Cuiabá de 24 a 31 de julho. Bastaram rumores de que esse órgão deve emitir uma comunicação a respeito da incompatibilidade entre a fé cristã e o comunismo para veículos de imprensa “opinarem” e “lamentarem” tal postura. Já falaram que isso é coisa dos “caciques” da igreja, da cúpula, numa narrativa que iria opor “opressores” aos “oprimidos” membros, manipuláveis etc. Mencionam tendenciosamente o ex-ministro da Educação, reverendo Milton Ribeiro, e o ministro do STF André Mendonça, como mancomunados com o bolsonarismo, e que esta postura seria eleitoreira por parte da igreja.
Pois aí há profundo desconhecimento sobre a forma de governo presbiteriano, sua visão teológica e seu método de interpretação das Escrituras. O governo é conciliar, ou seja, não há “caciques”, ou “donos”; é a federação de igrejas locais, que formam presbitérios, e as centenas destas instâncias se reúnem em concílios. O Supremo Concílio, por sua vez, é a instância final desta representatividade da liderança da igreja.
É possível, ou melhor, é direito de uma denominação alterar seus valores e dogmas por meio de seus mecanismos eclesiásticos internos, mas não é direito de ninguém fazê-lo de fora
Sua visão teológica é clara: não querem se envolver em política partidária, mas não se olvidam de orientar quanto à Política. Levam a sério o fato de não serem do mundo, mas nele estarem como embaixadores de outro Reino. E isto não impede, ao mesmo tempo, de agirem pelo bem da pólis, mesmo como magistrados dela. Há plena liberdade para que seus membros sejam partidários pessoalmente, porém há condutas políticas incompatíveis com suas lentes teológicas. E isto é o que devem discutir nesta reunião da próxima semana.
A discussão, que não é nova, questiona a possibilidade de um cristão aderir à filosofia socialista. Quanto a esse ponto, recomendamos a obra Torturado por amor a Cristo, escrita por Richard Wurmbrand, que foi pastor na Romênia no século passado. Wurmbrand era um jovem ateu em uma Romênia ocupada pelo comunismo soviético por 45 anos, sem liberdade religiosa. Em algum momento de sua vida ele se converte ao cristianismo, torna-se pastor e acaba sendo preso pelo regime socialista; durante 14 anos de sua vida ele permanece na solitária pelo fato de ser cristão e de pregar o Evangelho. A perseguição aos cristãos na Romênia pelo regime socialista era parecida com a perseguição vivenciada pela igreja cristã em seus primeiros séculos. A filosofia política do socialismo é antagônica ao cristianismo; é impossível conciliá-las, salvo se a sua ortodoxia for anulada.
No mesmo passo podemos lembrar do Decreto contra o comunismo do papa Pio XII, em 1949, e mesmo as recentes declarações da Igreja Universal do Reino de Deus sobre a incompatibilidade entre a ideologia de esquerda e a fé cristã, que parecem não terem tido a mesma reação da mídia “progressista” como este documento que – quem sabe? – será publicado pelos presbiterianos.
É possível, ou melhor, é direito de uma denominação alterar seus valores e dogmas por meio de seus mecanismos eclesiásticos internos, mas não é direito de ninguém fazê-lo de fora. As religiões têm autonomia confessional interna quanto aos seus dogmas, credos, cosmovisão etc. Tal autonomia integra a liberdade institucional de organização religiosa e confessional que compõe o plexo de direitos da liberdade religiosa.
Uma religião, juridicamente falando, é constituída dos elementos ditos “DMC”: relação com a Divindade; um código de valores Morais próprios; e existência de Culto. Cabe ao Estado e demais religiões e grupos não interferir nessa tríade. Qualquer interferência é uma afronta à liberdade religiosa. No mercado das religiões, uma pode criticar os valores morais da outra, porque a apologética e o proselitismo são núcleo dos próprios valores morais de cada uma delas, mas nunca pode existir violência ou imposição de um dogma, visão ou forma de funcionamento e ensino de uma religião sobre outra. E quanto ao Estado? Nesse mercado, ele deve apenas ser observador no sentido de colaborar para que ele ocorra, nada mais.
E ainda há gente por aí que pergunta: “Direito Religioso” trata do quê, mesmo?...
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos