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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Preconceito religioso

Pregador agredido na Paulista: intolerância que desafia a democracia

Intolerância religiosa
Grupo abordou pregador na Avenida Paulista; um dos agressores jogou Bíblia no chão. Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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No último domingo, 5 de janeiro de 2025, a Avenida Paulista, tradicional espaço de manifestações culturais e sociais em São Paulo, tornou-se palco de um preocupante episódio de intolerância religiosa. Um pregador, trajando roupas sociais e segurando uma Bíblia Sagrada aberta, anunciava a mensagem do Evangelho da salvação por meio de Cristo aos transeuntes. Durante sua pregação, foi abordado de forma hostil por um grupo de homens que lhe dirigiram insultos verbais, como “burro” e outras expressões depreciativas; em seguida, ele foi agredido fisicamente quando um dos homens desferiu um tapa em sua mão, derrubando a Bíblia ao chão. Mesmo diante da violência, o pregador respondeu de forma pacífica e convicta: “Ele faz isso porque sou crente, porque não posso bater nele”, reafirmando sua adesão aos valores cristãos e sua defesa da liberdade religiosa.

O ocorrido foi registrado por Charles Gama, um transeunte que interveio verbalmente em defesa do pregador e posteriormente divulgou o caso em suas redes sociais, classificando-o como um exemplo claro de intolerância religiosa. Em vídeos compartilhados pelos perfis @irpretth e @edt.negao, é possível observar Charles confrontando o grupo agressor, questionando: “Vocês fazem isso porque ele está sozinho”. Ele também destacou a incoerência da situação, apontando que outros grupos próximos – como músicos de rock se apresentando ao vivo e um grupo dançando ao som de música alta – não foram alvo de qualquer repreensão pelo mesmo grupo. Essa seletividade evidenciou um preconceito direcionado especificamente ao pregador, identificado como um homem preto, de aparência humilde e cristão evangélico.

Nas redes sociais, o episódio gerou ampla repercussão, mobilizando apoio ao pregador e provocando indignação coletiva. Diversas manifestações destacaram a importância da liberdade religiosa e de expressão, bem como a necessidade do respeito às diferenças em uma sociedade pluralista.

Episódios como a agressão ao pregador na Avenida Paulista revelam a fragilidade da liberdade religiosa frente a preconceitos e atos de intolerância

Além da ocorrência, em tese, da incidência de crimes, como veremos melhor a seguir, este evento traz à tona reflexões fundamentais sobre a convivência em uma democracia plural. A liberdade de expressão e a liberdade religiosa são pilares da Constituição brasileira e sustentam a ideia de que todos têm o direito de manifestar suas crenças de forma pacífica e respeitosa. No entanto, episódios como esse revelam a fragilidade desses direitos frente a preconceitos e atos de intolerância. A prática do proselitismo religioso, um dos direitos fundamentais nucleares da liberdade religiosa, é uma manifestação legítima e protegida em um Estado laico colaborativo como o Brasil. Por meio do proselitismo, os fiéis exercem seu direito de compartilhar sua fé, contribuindo para o enriquecimento da pluralidade cultural e espiritual que caracteriza uma sociedade democrática.

A ausência de intervenção imediata por parte das autoridades, como a Polícia Militar ou a Guarda Civil, levanta questionamentos sobre a aplicação prática das garantias legais que protegem contra atos de intolerância e discriminação, previstos na lei penal. Essa omissão pode ser reflexo de falta de preparo ou conhecimento sobre o tema, mas também não se pode descartar o estigma que frequentemente recai sobre os evangélicos, muitas vezes associados ao termo “crente” de maneira pejorativa. Esse preconceito, alimentado por ideologias que paradoxalmente pregam tolerância e inclusão, reflete uma contradição que exige atenção: é incoerente defender diversidade e, ao mesmo tempo, negar respeito àqueles que professam sua fé de forma legítima.

A tolerância, um valor essencial para a convivência democrática, não pode ser seletiva. Como já afirmou a ministra Rosa Weber, “a liberdade de expressão, reafirme-se, em absoluto abriga agressões e manifestações que incitem ódio e violência, inclusive moral”. O filósofo Karl Popper também advertiu que uma sociedade genuinamente tolerante precisa ser intolerante à intolerância, sob pena de comprometer a própria coexistência pacífica. Essa perspectiva encontra respaldo na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que exclui da proteção da liberdade de expressão toda apologia ao ódio ou incitação à violência. O equilíbrio entre liberdade de expressão e respeito mútuo é indispensável para garantir a harmonia social e, definitivamente, não foi observado no ocorrido na Avenida Paulista.

Além das implicações morais e sociais, o episódio apresenta graves violações à legislação brasileira. O artigo 5.º da Constituição Brasileira, que assegura a liberdade religiosa e de expressão como direitos fundamentais, foi claramente violado. Também se verificam a incidência, em tese, do artigo 20 da Lei 7.716/1989 (a Lei Antirracismo, que também criminaliza atos de discriminação por motivo de religião) e do artigo 208 do Código Penal, que pune o vilipêndio a objeto de culto religioso. Ademais, ao nosso ver e em tese, ofensas direcionadas ao pregador também podem ser caracterizadas pelo crime de injúria religiosa, nos termos do artigo 140, §3.º do Código Penal. Esses elementos reforçam a necessidade de uma resposta jurídica eficaz para assegurar a proteção dos direitos fundamentais previstos pela nossa Constituição.

A intolerância religiosa representa não apenas uma agressão à pessoa humana, mas uma afronta ao núcleo essencial dos direitos fundamentais em um Estado Democrático de Direito. A dignidade da pessoa humana, juntamente com as liberdades de consciência, crença, expressão e religiosa, compõem os alicerces da República Federativa do Brasil. Esses direitos são indissociáveis e sustentam a construção de uma sociedade justa, plural e democrática. A violação desses princípios compromete não apenas os valores constitucionais, mas também a própria integridade do ordenamento jurídico.

Em uma sociedade pluralista, a tolerância deve ser uma via de mão dupla. Reconhecer a diversidade implica não apenas respeitar diferenças de opinião, crença ou estilo de vida, mas também garantir que todos possam coexistir em igualdade de condições. Incidentes de intolerância religiosa como o ocorrido na Avenida Paulista evidenciam a urgência de um diálogo que transcenda preconceitos e promova o respeito mútuo. Afinal, a liberdade religiosa e a tolerância não são apenas direitos; são pilares fundamentais para a construção de uma democracia verdadeiramente inclusiva e justa.

(Esta coluna foi escrita em coautoria com Danielle Maria, advogada, especialista em Direito Religioso e membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião – IBDR.)

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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