Nesta semana a CPI da pandemia no Senado foi palco de uma triste quadra: o esperado depoimento do empresário e filantropo Carlos Wizard Martins, grande brasileiro, empresário de sucesso e um dos grandes responsáveis pelo acolhimento de milhares de venezuelanos refugiados da ditadura bolivariana.
Após muita pressão dos senadores para que viesse depor à CPI, Wizard (que estava nos Estados Unidos acompanhando o pai doente e uma filha em gravidez de risco para lhe dar o 19.º neto) veio ao Brasil, entregou seu passaporte à Polícia Federal, e dirigiu-se a Brasília para cumprir sua obrigação.
Porém, para a indignação de alguns – e, a nosso ver, em um verdadeiro show de como um cidadão consciente de direitos e deveres deve se portar –, Wizard se resumiu a fazer uma fala de abertura mostrando sua história pessoal (de sucesso e em absolutamente nada ligada à vida pública – o que espanta e escandaliza muita gente por aqui), e a invocar seu direito de permanecer em silêncio.
Existe base para esta “indignação” quanto ao uso de expressões religiosas em uma casa legislativa como o Senado da República?
O que mais chamou a atenção, porém, naquela sessão foi o uso de termos religiosos tanto por Wizard quanto pelos senadores. O depoente usou o nome de Deus seis vezes, citando três passagens bíblicas. Já os senadores empregaram o termo “Deus” 28 vezes; “Jesus”, 30 vezes; “Bíblia” ou “bíblico”, 25 vezes; “religião”, cinco vezes; “cristão(ã)” ou “cristianismo”, nove vezes; “evangélico”, três vezes. Ou seja, a religião evocou uma centena de expressões ali.
No decorrer do depoimento, inclusive, algumas mídias sociais andaram agitadas com os “comentaristas” da vida pública achando o cúmulo que se evocasse o nome de Deus, ou de Jesus, para a justificativa das falas:
Os tempos políticos atuais, e especialmente as eleições do próximo ano, trarão o tema religioso novamente para o centro de muitas das disputas, nos diferentes espectros e campos ideológicos. Narrativas que se abrem e retóricas inflamadas sobre o que se tem ou não em termos de legitimidade do discurso. Mas existe base para esta “indignação” quanto ao uso de expressões religiosas em uma casa legislativa como o Senado da República?
A partir do século 18, o Iluminismo, doutrina política que assolou a Europa, na pena de Hegel dizia que o “Estado é a definitiva realidade”. Afinal seria este, o Estado, que exprimiria a razão humana de maneira mais elevada, percebendo-se cumpridor de um destino: enquanto o homem nasce, cresce e morre, o Estado permanece como instituição sólida enquanto ordem a concretizar o progresso infinito de nossa espécie.
Já leu essas palavrinhas em algum lugar por aí? “Ordem e progresso”. Pois é. Ela veio parar no centro de nosso pavilhão nacional, junto com o golpe positivista de Estado que derrubou nossa ordem política anterior, o Império. Supremo paradoxo: uma ideologia em que tudo deveria passar pela peneira da razão e do método científico, no dizer do professor romeno Lucian Blaga. Provas de ser um devaneio filosófico: a própria simbologia heráldica que traz este (feio) globo astronômico, a exprimir a ideia de Comte de que o indivíduo é um ser sem valor em si, mas apenas contido numa vastidão coletiva chamada de “todo social” que está fadada ao progresso e à ordem. Eis a nossa triste fundação política republicana.
Mas o que isso tem a ver com nosso “causo”?
Em primeiro lugar, se o Estado é a definitiva realidade racional, a religião não teria espaço na arena pública, pois é lastreada em dogmas não verificáveis pelo método científico. Esta afirmação tira do ser humano a tradição milenar de sua busca e impulso natural para crer e derramar sobre esta abstração os anseios e esperanças do melhor que a vida poderia dar. Que sina a nossa, pensar que na política residem as esperanças de um mundo melhor! Não podemos esquecer que religião, antes de qualquer coisa, é experiência, como diria Rudolf Otto. Uma experiência que acontece primeiramente no coração e posteriormente na razão. Como experiência é preciso vivê-la. Eis aí, provavelmente, um dos motivos por que jornalistas e outros reclamam tanto do fato de alguém mencionar Jesus no Senado... falta-lhes a experiência.
O segundo aspecto é a contradição entre esta vida aleatória, desprovida de um propósito e apenas justificável no oceano (ou na constelação) impessoal, e o senso de dignidade humana estampado em nossa Constituição como sendo um dos pilares que erigem o prédio da democracia. Tirar a fé do sentido de dignidade – e sua expressão de ordem da vida – é ferir seu núcleo essencial e roubar seu sentido mais prático: o de explicar no nível profundo do ser as razões da existência individual de cada um.
Que sina a nossa, pensar que na política residem as esperanças de um mundo melhor!
Lembremos que, para uma Constituição promulgada sob a proteção de Deus, temos de aprender, definitivamente, que o Estado não é a suprema realidade, mas uma grande e complexa máquina a serviço da sociedade política. Esta, sim, a sociedade política, organização racional das diversas comunidades unidas em um território por laços culturais e de história e herança comuns, é que carrega o destino tanto pessoal quanto coletivo.
O Estado laico nada mais é que o espaço da livre concorrência de ideias a respeito de Deus, do divino, do sagrado, seja nas quatro paredes do lar, seja nas salas de reunião da República. Já chegou o tempo de sepultarmos a doutrina positivista e abraçarmos de vez o pluralismo político que tanto alardeamos, mas ao qual pouco espaço damos por aqui. A fé tem seu pleno direito de ser expressa em todo e qualquer ambiente e até a doutrina positivista, bem no fundo, sabe disso: a prova é a cruz de Cristo formada pelas estrelas, no globo azul, atrás da tal “ordem e progresso”.
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