A perseguição religiosa no Brasil continua a ser uma preocupação constante. O ritmo frenético e a determinação em perseguir religiosos são notáveis. Se Robespierre estivesse vivo, certamente estaria perplexo diante da intensidade de alguns grupos anticulto no Brasil.
Em setembro, soubemos que a renomada influenciadora Karol Eller havia abraçado a fé evangélica, decidindo renunciar às práticas homossexuais e adotar o conjunto de doutrinas cristãs sobre a sexualidade conforme a ortodoxia teológica. Algumas semanas depois, porém, o Brasil foi abalado com a triste notícia de seu suicídio.
Infelizmente, esse acontecimento foi suficiente para que, em poucos dias, três deputados federais fizessem a conjectura de que Karol teria se suicidado devido a uma suposta “cura gay” durante um retiro espiritual organizado pela Igreja Assembleia de Deus em Goiás, conhecido como Retiro Maanain. Essa conjectura se baseou na premissa de que Karol, após tornar-se evangélica, teria decidido tirar a própria vida. Diante desse cenário, é importante esclarecer alguns pontos para essas pessoas anticulto.
A religião é a soma de três elementos básicos: Divindade, Moralidade e Culto. Não existe religião se um desses três elementos não estiver presente. Tal posição é pacificada nos livros de Direito, da Argentina aos Estados Unidos, de Portugal à Itália, pelo menos. Inclusive no Brasil, esta mesma concepção está presente em diversas decisões do STF, como bem demonstra uma pesquisa simples na área de jurisprudência de seu portal.
Para os cristãos, existe um conjunto de regras que se reveste de uma moralidade básica e se traduz, por fim, em um “dever-ser”. Ser cristão é, também, observar – ou ao menos tentar observar – um caminho de busca pelas virtudes
A dinâmica desses três elementos funciona da seguinte forma: as pessoas de fé ou os grupos religiosos relacionam-se com a divindade a partir de valores morais (moralidade) que lhes são próprios e que se encerram em um culto, que se traduz em um ato solene de adoração, formando a tríade DMC – Divindade, Moralidade e Culto. A pergunta que se impõe a qualquer religioso é: como se relacionar com a divindade – objeto de seu culto –, e como esse culto deve ser realizado? A resposta para essas perguntas está na moralidade da respectiva religião, ou seja, no conjunto de regras de fé e prática estipuladas por seus livros sagrados e demais declarações doutrinárias respectivas. A moralidade está plasmada em livros sagrados e documentos confessionais/canônicos complementares. É o “dever-ser” para que aquelas pessoas religiosas alcancem o favor da divindade ou obtenham acesso a ela.
Para os cristãos, sejam eles de origem protestante, ortodoxa ou católica, existe um conjunto de regras que se reveste de uma moralidade básica e se traduz, por fim, em um “dever-ser”. Ser cristão é, também, observar – ou ao menos tentar observar – um caminho de busca pelas virtudes cardeais (prudência, justiça, temperança e fortaleza) e teologais (fé, esperança e amor), sempre com o auxílio do Espírito Santo. Nesse caminho de busca pelas virtudes, ocorre um necessário afastamento de práticas que são consideradas “vícios” – e, todas as vezes que usarmos esta palavra neste texto, referimo-nos ao sentido teológico da palavra, e não no sentido corrente que se dá a ela – e desviantes do alvo. O alvo do cristão é ser o mais semelhante a Cristo possível. O desvio é aquela conduta oposta à virtude, e que o afasta de Cristo. É o que os cristãos chamam de pecado.
São muitos os vícios que fazem os cristãos errarem o alvo diariamente e os afastam dEle. É uma luta constante. Alguns fiéis possuem um “espinho” na carne – lembrando das palavras de São Paulo em 2 Coríntios 12 –, e as dificuldades existem em diversas áreas. Os seres humanos compartilham essa tendência ao pecado desde o que aconteceu no Paraíso. Todavia, devido à maravilhosa diversidade com que Deus os criou, essa tendência nem sempre é a mesma, variando de pessoa para pessoa.
Compreendemos que alguns leitores, diante desta explicação, possam ter as reações mais diversas, inclusive a de achar que tudo isso seja uma enorme bobagem. É legítimo discordar de uma abordagem espiritual sobre os vícios humanos, e até mesmo expressar sua veemente discordância. Entretanto, é essencial ressaltar que ninguém tem o direito de silenciar ou impedir um cristão de seguir tais convicções. Por quê? Porque esta maneira de pensar se baseia nos textos sagrados nos quais bilhões de cristãos em todo o mundo depositam sua fé. Portanto, nem os refratários à religião, nem o Estado, nem grupos minoritários têm o direito de privar os cristãos da liberdade de pensar e viver de acordo com essas convicções. Vale a pena observar o que o Catecismo da Igreja Católica diz sobre o pecado:
“1733. Quanto mais as pessoas fizerem o bem, mais livres se tornam. Não há verdadeira liberdade senão no serviço do bem e da justiça. A opção pela desobediência e pelo mal é um abuso da liberdade e conduz à escravidão do pecado.
1734. A liberdade torna as pessoas responsáveis por seus atos, na medida em que são voluntários. O progresso na virtude, o conhecimento do bem e a ascese aumentam o domínio da vontade sobre os próprios atos. A imputabilidade e responsabilidade de um ato podem ser diminuídas e até anuladas pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais. Todo o ato diretamente querido é imputável ao seu autor.”
Para trazermos um documento confessional protestante sobre o pecado, vejam o que diz a Confissão de Fé Batista:
“Capítulo 15 (...) 5. Mediante Cristo, no pacto da graça, Deus fez provisão completa para que os crentes sejam preservados na salvação. Assim como não existe pecado tão pequeno que não mereça a condenação eterna, não existe pecado tão grande que possa trazer condenação sobre os que se arrependem. Isso torna necessária a pregação constante de arrependimento.”
A conexão com o caso de Karol Eller é profunda e significativa. Em um determinado ponto de sua trajetória, ela reconheceu a necessidade de estabelecer uma relação com a divindade conforme compreendido pelos evangélicos. Ela identificou na Trindade – Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo – a divindade a quem dedicaria seu culto. Como colocar isso em prática? Karol procurou uma igreja evangélica e iniciou essa jornada, uma jornada típica de alguém que busca uma conexão espiritual mais profunda.
Para muitos cristãos, a moralidade desempenha um papel central em sua fé. É a moralidade que orienta como a pessoa religiosa deve se relacionar com a divindade e realizar seu culto
Ela certamente enfrentou questionamentos significativos nesse processo. Como estabeleço uma relação com Jesus? Como posso compreender a influência do Espírito Santo na minha vida? O que significa verdadeiramente cultuar a Deus? – essas e outras perguntas provavelmente passaram por sua mente. Diante dessas dúvidas, ela buscou respostas na Igreja Assembleia de Deus; poderia ter feito o mesmo em outra denominação evangélica, ou até mesmo em uma religião diferente. A escolha da Assembleia de Deus e a participação em um retiro espiritual – aliás, uma atividade religiosa propícia para aqueles que estão no início de sua jornada de fé – foram marcos importantes nesse percurso espiritual.
Nesse percurso, Karol descobriu um novo propósito, uma nova meta: viver para Jesus Cristo. Essa decisão a conduziu por um caminho de renúncia a comportamentos que a desviariam deste objetivo, segundo a tradição religiosa que ela começou a seguir, incluindo a homossexualidade. A perspectiva de que a prática homossexual é vista como uma conduta desviante em relação ao alvo, que é Cristo, é fundamentada na interpretação predominante dos documentos sagrados e doutrinários cristãos, inclusive na tradição evangélica escolhida por Karol.
Recordemos: para muitos cristãos, a moralidade desempenha um papel central em sua fé, sendo este o “M” essencial na tríade religiosa DMC. É o “M” de moralidade que orienta como a pessoa religiosa deve se relacionar com a divindade e realizar seu culto. A doutrina expressa na declaração doutrinária das Igrejas Assembleias de Deus no Brasil deixa clara a postura em relação a esse tema:
“Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança e fê-los macho e fêmea: ‘E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou’ (Gn 1.27), demonstrando a sua conformação heterossexual. A diferenciação dos sexos visa à complementaridade mútua na união conjugal: ‘Todavia, nem o varão é sem a mulher, nem a mulher, sem o varão, no Senhor’ (1 Co 11,11); essa complementaridade mútua é necessária à formação do casal e à procriação. Reconhecemos preservada a família quando, na ausência do pai e da mãe, os filhos permanecerem sob os cuidados de parentes próximos. Rejeitamos o comportamento pecaminoso da homossexualidade por ser condenada por Deus nas Escrituras, bem como qualquer configuração social que se denomina família, cuja existência é fundamentada em prática, união ou qualquer conduta que atenta contra a monogamia e a heterossexualidade, consoante o modelo estabelecido pelo Criador e ensinado por Jesus.”
De forma semelhante entendem os católicos em seu Catecismo, cuja versão mais recente já tem 30 anos e que diferencia claramente a tendência homoafetiva do ato homossexual, condenando apenas este último enquanto reconhece que as origens daquela seguem por explicar:
“2357. A homossexualidade designa as relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo. A homossexualidade se reveste de formas muito variáveis ao longo dos séculos e das culturas. Sua gênese psíquica continua amplamente inexplicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves, a tradição sempre declarou que ‘os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados’. São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira. Em caso algum podem ser aprovados.”
Tais posições refletem a interpretação específica dessa comunidade religiosa, e é crucial reconhecer a diversidade de perspectivas presentes em outras vertentes do cristianismo e em diferentes religiões. O leitor pode discordar dessas afirmações, mas é fundamental reconhecer o direito de expressá-las. A diversidade de pensamentos é essencial em uma sociedade que preza pela liberdade religiosa e pela democracia. Restringir ou proibir tais pontos de vista comprometeria nossa condição de país laico, onde a liberdade de crença é um princípio fundamental.
É importante compreender que a prática de renúncia a vícios e comportamentos desviantes em busca de um alvo, como Jesus Cristo, é uma parte central da vivência cristã. As afirmações de Karol Eller refletem sua busca nesse sentido – uma jornada que, para ela, envolveu renúncia e comprometimento espiritual. Ao discutir essas questões, é valioso manter um diálogo respeitoso e aberto, reconhecendo que as perspectivas podem variar amplamente. O respeito à diversidade de opiniões é um pilar importante em sociedades que valorizam a tolerância e a coexistência pacífica.
A mente humana é de uma vastidão incompreensível, e entender completamente as motivações por trás do suicídio é uma tarefa impossível. Em situações como essa, não deve prevalecer a atitude de julgamento, mas de solidariedade. Em vez de caçar cultos, pastores e igrejas, é momento de se voltar para a empatia e compaixão
O “espinho da carne”, na perspectiva de Karol Eller, era um desafio particular que ela escolheu enfrentar, marcando o início de uma nova jornada espiritual. No entanto, semanas depois, essa jornada foi tristemente interrompida por ela mesma, em um ato de suicídio. É um momento doloroso e difícil, pois testemunhamos o término da vida de uma jovem que inspirou muitos no Brasil.
Neste momento, é crucial reconhecer que as razões por trás desse ato são complexas e, muitas vezes, insondáveis. A mente humana é de uma vastidão incompreensível, e entender completamente as motivações por trás do suicídio é uma tarefa impossível. Estendemos nossas mais sinceras condolências e solidariedade aos amigos e familiares de Karol, que enfrentam essa perda devastadora.
É fundamental lembrar que, em situações como essa, não deve prevalecer a atitude de julgamento, mas de solidariedade. Em vez de caçar cultos, pastores e igrejas, é momento de se voltar para a empatia e compaixão. Especialmente diante da fé que Karol abraçou no fim de sua vida, é vital respeitar as diversas jornadas espirituais das pessoas, sem ceder a perseguições. Imperioso que, ao menos na cidade dos homens, possamos encontrar compreensão e aceitação diante dessa realidade difícil. Que Karol encontre paz nas mansões celestiais da Cidade Eterna, e que todos os que a amaram encontrem conforto diante dessa triste perda.
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