O Brasil é laico, afirmação unânime entre nós, brasileiros. Mas, afinal de contas, o que é isso? Aí nascem os problemas: isso significa que a fé é de foro íntimo e apenas dentro da minha casa posso exercê-la, ao estilo francês de ser laico?
Vamos passear pela história para tentar responder a esta questão. De maneira bem geral, houve dois grandes sistemas de laicidade colocados em prática na segunda metade do século 18. Entretanto, não podemos esquecer que a ideia de separação entre o sagrado e o profano/secular é algo antigo, vem lá da longínqua trindade da filosofia, como explicamos em nosso livro Direito Religioso (p. 128 a 132). Sócrates foi morto porque não aceitava mais a mistura do sagrado e da política, Platão, n’A República, faz a separação entre as coisas do espírito e as da matéria; de Aristóteles nem se fala. De certa forma, Jesus Cristo tocou nela quando disse “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O papa Gelásio I faz claramente a distinção da Igreja e do Estado na carta Duo Sunt, no século 5.º. Contamos essa história com mais detalhes em nosso livro (p. 106-127). Uma das lutas da reforma protestante foi esta separação, em meio a uma teocracia imposta por Bonifácio VIII.
Os Estados Unidos e a França foram os grandes “Estados modernos” que primeiro implementaram a laicidade de uma forma parecida com o que entendemos hoje pelo termo. Na França, a ideia era a de criar um novo mundo, a partir do lema “liberdade, igualdade e fraternidade”, onde não existiria mais a divisão da sociedade existente no Ancien Regime – clero, nobreza e povo, o “terceiro estado”. Não vamos entrar na história da Revolução Francesa, que teve também seus bons frutos, mas o fato é que os líderes da revolução pretendiam criar tudo ex nihilo, inclusive redefinindo o tempo: no calendário da revolução a queda da Bastilha consta como ano zero. Mas, para criar tudo ex nihilo, era necessário acabar com a religião milenar do cristianismo, ou pelo menos submetê-la à religião do Estado; assim, em 12 de julho de 1790 é criada a igreja constitucional francesa e a obrigação de que todo o clero deveria submeter-se a ela e não mais a Roma. Entretanto, muitos padres não aceitaram adorar a “deusa Razão” (várias igrejas católicas foram tomadas e transformadas em templos de culto da nova religião estatal); o destino de quase 200 deles foi a guilhotina.
Estados Unidos e França foram os grandes “Estados modernos” que primeiro implementaram a laicidade de uma forma parecida com o que entendemos hoje pelo termo
Quase 15 anos antes, em junho de 1776, no contexto da luta pela sua independência da Inglaterra, no outro lado do Oceano Atlântico a história foi bem outra. Os norte-americanos, com inspiração na Revolução Gloriosa (até porque a francesa nem havia acontecido ainda), unem-se para escrever a famosa Declaração dos Estados da Virgínia e, no artigo 14, consagram: a religião ou o culto devido ao Criador é livre! Um mês depois vem a Declaração de Independência norte-americana, que começa com a seguinte frase:
Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão vida, liberdade e busca da felicidade.
Esta frase é considerada uma das mais conhecida do idioma inglês. Ou seja, além da não criação de uma religião estatal, a tradição religiosa dos americanos foi protegida, respeitada e serviu de base para a própria criação do novo Estado. Aqui temos o modelo que deu origem ao sistema de laicidade brasileiro. Reitero: serviu de base para o nosso sistema de laicidade! Evidentemente temos muita influência positivista na criação da República Velha, mas, até nisto a influência veio de Augusto Comte, um filósofo, digamos, “preocupado” com a metafisica; não do materialista Jean-Jacques Rosseau, base teórica da Revolução Francesa.
Por outro lado, não é novidade para ninguém que a república norte-americana foi inspiração dos republicanos brasileiros e que o sistema de laicidade brasileiro foi totalmente inspirado no modelo americano. Basta olhar para a bandeira nacional, criada pelos republicanos, para ver o respeito à fé dos brasileiros, tendo nela a cruz de Cristo em forma de constelação. Aliás, se analisarmos textos antigos, de padres da época, muitos comemoravam a nova laicidade brasileira. Logo, percebemos que nosso sistema de laicidade não tem nada a ver com o francês e que nenhum padre perdeu a cabeça por aqui.
Passado quase um século da República Velha, a Constituição de 1988 mudou nosso sistema de laicidade? Vejamos: nossa Constituição começa sob a proteção de Deus (preâmbulo), depois garante a inviolabilidade da crença, do culto, da organização religiosa (artigo 5.º, VI). Também garante o acesso à religião por presos e internados em hospitais (artigo 5.º, VII). Consagra a objeção de consciência por motivos religiosos, inclusive para não precisar prestar o serviço militar (artigos 5.º, VIII e 143, § 1.º). Ainda temos a previsão da imunidade de impostos pelos templos de qualquer culto (artigo 150, VI, “b”), a garantia do ensino religioso nas escolas públicas para as nossas crianças (artigo 210, § 1.º), e a garantia de que o casamento religioso terá efeitos civis (artigo 226, § 1.º).
E o artigo que define a laicidade brasileira (artigo 19, I) traz duas informações importantes: vedação ao embaraço ao culto e colaboração recíproca entre Igreja e Estado em prol do bem comum. Pois então, com todas estas garantias e possibilidade de Estado e Igreja colaborarem na persecução do bem comum, está bem claro que a laicidade brasileira não é a francesa e se assemelha à americana. Logo, a laicidade colaborativa brasileira não dispensa a influência da religião; pelo contrário, garante que sua voz seja ouvida em todos os assuntos, conforme os fundamentos da República previstos no artigo 1.º, II, III e V da Constituição: cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político.
Somente existe pluralismo político se, enquanto cristãos, pudermos influenciar a cultura e, a partir dos nossos valores e da nossa voz, participarmos das coisas de interesse da polis, em todas as suas dimensões. Quando participamos, a cidadania se efetiva e nossa dignidade é preservada.
Dizer que no Brasil a religião não pode influenciar nossas vidas em todos os aspectos é, das duas, uma: desconhecimento de como funciona nossa laicidade, ou aversão à religião e busca da reconstrução do conceito de laicidade para albergar uma narrativa, ao melhor estilo do Ministério da Verdade de George Orwell.
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