Não é à toa que nossa coluna leva o nome de “Crônicas de um Estado Laico”. A laicidade é o tema de fundo de muitas das relações sociais e políticas que permeiam nossa república e sociedade. Se a religião realmente é a base da cultura, como ensina Christopher Dawson, o direito religioso, que se ocupa do estudo de seu fenômeno e da promoção da ordem dele decorrente, quer seja no âmbito interno (eclesiástico) ou externo (religioso), é a terra em que a laicidade deita suas raízes.
Falar de laicidade é também falar de religião, direito e política. Entretanto, na arena de debates surgem novos oráculos de Delfos que, em transe, conceituam a relação da religião e do Estado no direito brasileiro sem ao menos abrir o texto constitucional, inviabilizando qualquer tentativa de um ponto comum. Conversar com alguém em transe é uma grande perda de tempo. Nosso esforço é de nos colocarmos entre os éforos e a pitonisa (lembrem do filme 300). Trocando em miúdos: entre os desonestos que financiam o “transe” e manipulam fontes e os cidadãos que buscam proteção e soluções para as relações que travam em sociedade.
Laicidade é um dentre tantos sistemas de relação entre o Estado e a Igreja, ou as religiões. Trazemos alguns que podemos chamar de gênero, do qual decorrem tantas outras espécies: o teocrático, que mistura o poder religioso com o político; o laicista, segundo o qual os governos civis constituídos agiriam com a motivação de extirpar expressões de religião dos ambientes públicos; o confessional, pelo qual o Estado elege uma igreja específica, sem se misturar com ela, mas beneficiando-a em detrimento das outras; e o secular/ateu, em que o Estado é a própria religião e seu chefe, o próprio deus.
Se a religião realmente é a base da cultura, o direito religioso é a terra em que a laicidade deita suas raízes
Ao observar as características distintas e específicas de cada um desses modelos exemplificados, e ao confrontá-las com as disposições previstas na Constituição republicana, é possível concluir que cada um deles foi igualmente rejeitado pelo Estado constitucional brasileiro.
Essa conclusão, no entanto, não seria juridicamente sustentável, caso se fundamentasse em nossa opinião e desejo pessoais, ou em um transe pitonísico. Portanto, a fim de demonstrar a viabilidade dessa constatação, parte-se da exposição dos quatro aspectos que são pontuados a seguir, todos compatíveis com a teoria jurídica hegemônica no Brasil.
Da constitucionalização do direito religioso
Assim, antes mesmo de indicar que tipo de relacionamento (entre os poderes político e religioso) foi constitucionalmente admitido, é necessário refletir, de forma breve, sobre o sistema de diretrizes que, atualmente, orienta a construção de uma compreensão válida acerca de qualquer instituto jurídico.
Em nosso país, a busca por essas diretrizes tem sido realizada sobre o terreno de um modelo teórico que se costuma denominar de neoconstitucionalismo. Destaque-se que no Brasil predomina, mais especificamente, o tronco neoconstitucional substancialista,que advoga o protagonismo do Poder Judiciário, mediante práticas ativistas que esvaziam aquela que é a função mais essencial do Poder Legislativo: a de estabelecer, mediante atuação de representantes eleitos pelo povo, consensos obrigatórios, nos termos da liturgia prevista na Constituição.
Evidencie-se, portanto, que a razão pela qual partimos da observância das instruções neoconstitucionalistas não reside na negação do papel de protagonista do Poder Legislativo, como deve ser em uma democracia representativa; nem, tão pouco, em uma suposta e inverídica inexistência de teorias jurídicas alternativas ao neoconstitucionalismo substancial e ao seu ativismo judicial.
Antes, o motivo decisivo para a utilização dos parâmetros teóricos neoconstitucionais está no fato de que essa corrente jusfilosófica foi imposta sob a autoridade não apenas dos ensinos de muitos juristas, como também dos posicionamentos judiciais prevalecentes nos tribunais brasileiros, inclusive e sobretudo do Supremo Tribunal Federal. Diante dessas circunstâncias, tornou-se forçoso admitir que um entendimento sobre os moldes vigentes da relação entre Estado e religião corresponderá tanto à atual concepção do direito no Brasil, quanto mais corresponda a um dos conceitos nucleares do neoconstitucionalismo, o da constitucionalização do direito.
Sendo assim, atente-se para a dupla projeção desse fenômeno da constitucionalização, a qual se manifesta enquanto 1. inclusão de ramos e matérias que eram disciplinadas unicamente pela legislação ordinária, mas passaram a integrar a Constituição; e 2. releitura – sobre todos os ramos (inclusive do direito religioso) e institutos juridicamente relevantes – à luz dos valores constitucionais.
Ressalve-se que não subestimamos os efeitos da constitucionalização inclusão, mas é justamente a faceta da constitucionalização releitura que produzirá as repercussões mais relevantes sobre o direito religioso e, inevitavelmente, sobre o processo de identificação do modelo de relacionamento entre os poderes político e religioso no Brasil. Isso porque a constitucionalização exigirá a observância de algumas diretrizes, entre as quais a da supremacia da Constituição, a da força normativa dos princípios constitucionais e a da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
Do modelo de relação Estado/religião à luz da constitucionalização
A diretriz da supremacia da Constituição estabelece a premissa de que a autoridade conferida às disposições constitucionais excede a de qualquer outra espécie normativa do sistema jurídico. Consequentemente, a Constituição brasileira representa a principal fonte de sentido de todo e qualquer instituto do direito religioso.
Portanto, deve-se sondar, a partir do texto constitucional, quais são as vigas que sustentam o sistema brasileiro de relação entre as entidades religiosas e os entes estatais.
Assim, um leitor atento ao teor do artigo 19, I, da Constituição Cidadã perceberá que ela consagrou dois princípios informadores do relacionamento religião/Estado. Um primeiro, o da separação/distinção/independência entre a ordem política (esfera social composta por todos os membros da sociedade) e a ordem religiosa (uma esfera social e espiritual integrada apenas pelos membros da comunidade que são adeptos da religião). E o segundo, o da colaboração – entre essas duas ordens – visando à promoção do interesse público; em outras palavras, do bem comum.
Diante desses parâmetros acolhidos pelo constituinte, conclui-se que se estabeleceu um sistema, o qual pode ser não apenas bem condensado na expressão laicidade colaborativa, mas também definido como um sistema de separação e, simultaneamente, de relacionamento benevolente entre os poderes religioso e secular coexistentes na sociedade.
A Constituição consagrou os princípios da separação/distinção/independência entre a ordem política e a ordem religiosa; e o da colaboração entre elas, visando à promoção do bem comum
Nesse contexto, percebe-se que esses dois princípios informadores da laicidade no Brasil 1. dão suporte a um modo de relacionamento Estado/religião que muito se assemelha ao molde arquitetado pelo filósofo Jacques Maritain, para o qual os poderes religioso e secular devem não apenas funcionar sem o domínio de um sobre o outro, mas também auxiliarem-se na promoção do bem comum; e 2. por consequência, representam um obstáculo à implementação de políticas públicas laicistas, as quais fomentariam a desconfiança e a rivalidade entre as ordens religiosa e política.
Neste ponto, merece destaque a segunda diretriz neoconstitucionalista anteriormente mencionada: a da força normativa dos princípios constitucionais. Ela firma a noção de que os princípios (incluídos os da separação e da colaboração entre os poderes religioso e político/secular), em si mesmos, são imperativos e que, portanto, eles dispensam a edição de leis e/ou outros atos normativos para irradiarem efeitos sobre todos aqueles que se sujeitam à autoridade do Estado.
Ressalte-se, em especial, que a normatividade do princípio da colaboração resulta no dever de reconhecimento da importância da ordem religiosa para a promoção do bem comum. Sendo assim, e considerando que o significado de interesse público está lastreado na tutela da dignidade da pessoa humana, não seria possível outra dedução a não ser a de que a Constituição brasileira atribuiu às organizações religiosas, ao lado do Estado, um papel proeminente na promoção do bem comum.
Do sistema de direitos fundamentais consagrado na Constituição
Conforme visto, a laicidade colaborativa determina que as entidades estatais e as religiosas atuem em parceria na promoção da dignidade da pessoa humana. Ocorre que os direitos fundamentais são os instrumentos jurídicos tipicamente destinados à concretização desse fundamento previsto no artigo 1.º, III, do texto constitucional. Portanto, o Estado laico colaborativo brasileiro e o poder da religião comungam da missão e do dever de auxiliarem-se mutuamente em processos de fomento de todos os direitos fundamentais: desde aqueles que se prestam à tutela das liberdades (inclusive as de consciência e de crença) até aqueles que foram instituídos com o objetivo de promover a igualdade e a fraternidade de todos.
No entanto, rememore-se, a constitucionalização do direito religioso impõe uma terceira diretriz, a da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Conforme esse fundamento do neoconstitucionalismo, a atuação do poder público (desde o momento da interpretação até o da concretização dos dispositivos constitucionais) deve ocorrer de forma a expandir, o quanto possível, os efeitos dos direitos atribuídos pela Constituição às pessoas humanas.
Sendo assim, bem como considerando o teor do princípio da colaboração no nosso sistema de laicidade, pode-se concluir que a Constituição reforçou o dever estatal de proteger os direitos fundamentais, inclusive o de liberdade religiosa. Afinal, o anúncio constitucional de uma parceria entre os poderes religioso e secular independentes seria praticamente inutilizado, caso também não estivessem constitucionalmente consagradas as ferramentas apropriadas ao funcionamento de um relacionamento colaborativo.
Perante a obrigação estatal de proteção de direitos fundamentais de natureza religiosa, então, destacam-se alguns de primeira dimensão, os quais proíbem o poder público de coagir as pessoas e que podem ser classificados em três grupos: o de liberdades de organização; o de liberdade de crença; e o de liberdade de culto.
A laicidade colaborativa determina que as entidades estatais e as religiosas atuem em parceria na promoção da dignidade da pessoa humana
No primeiro grupo, desdobram-se os direitos fundamentais: de os fiéis congregarem-se – de acordo com os parâmetros da fé que professam – e sem nenhum embaraço imposto pelo Estado; e à imunidade tributária sobre templos de qualquer culto.
No segundo agrupamento estão elencados os direitos fundamentais: de, quer em particular, quer em público, professar, deixar de professar ou não professar crença; de escusa (por motivo de consciência) de obrigação legal; e de os pais educarem, de acordo com a sua fé, a própria prole. Lembrando que o direito à crença antecede todos os demais, por sua natureza.
Por fim, no terceiro grupo está presente o direito fundamental dos fiéis de – em ambiente privado ou público – reunirem-se para cultuar, mediante expressões de devoção e prática de sacramentos definidos de acordo com os preceitos religiosos que professem.
Das garantias constitucionais das liberdades religiosas
Não bastasse a proteção à liberdade religiosa consubstanciada nos direitos fundamentais, a Constituição republicana previu – também como balizas delimitadoras do relacionamento do Estado com a ordem religiosa – as três garantias seguintes.
A primeira, o pluralismo político, o qual não só implica, nas palavras de José Afonso da Silva, “o direito inalienável para o homem de pertencer a todas as comunidades de ordem moral, cultural, intelectual e espiritual, únicas que permitem o desenvolvimento da pessoa”, como também, consequentemente, impede o poder estatal de excluir os devotos do convívio e da influência políticos.
Uma segunda (em sintonia com o posicionamento do Supremo Tribunal Federal a partir de 2008, ano do julgamento do Recurso Extraordinário 349.703-1) é a garantia de que nem mesmo as leis têm eficácia se elas forem contrárias a direitos religiosos previstos em tratados internacionais de direitos humanos internalizados no Brasil.
As garantias constitucionais permitem rejeitar tanto as concepções que colocam o Estado e a religião em campos antagônicos quanto as que defendem a submissão do poder estatal ao poder religioso
E a terceira garantia veda até mesmo a suspensão dos direitos de liberdade religiosa, exceto o de reunião, ainda que naquelas hipóteses de crises extremas que demandam tais como a decretação de estado de defesa ou de estado de sítio. Ou seja, a Constituição garante que nem a finalidade de proteger a sobrevivência do Estado e das instituições democráticas autoriza a interdição de direitos religiosos.
Vê-se, finalmente, que essas garantias – somadas ao conjunto de princípios constitucionais e de direitos fundamentais – oferecem motivos suficientes para a rejeição tanto daquelas concepções que colocam o Estado e a religião em campos antagônicos, quanto daquelas que defendem a submissão do poder estatal ao poder religioso. Conclui-se que o modelo de laicidade colaborativa, instituído pela Constituição da República Federativa do Brasil, dispõe, lado a lado e com mútua independência, os entes estatais e as entidades religiosas, todos comissionados para o trabalho de promover o bem comum e a dignidade da pessoa humana em suas mais diversas nuances, inclusive na religiosidade.
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