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Crônicas de um Estado laico

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Eleições

Por que a liberdade religiosa incomoda tanto a extrema esquerda?

Jessé Souza escreveu artigo em que mostra não entender o significado da laicidade.
O sociólogo Jessé Souza em foto de 2015, quando era presidente do Ipea. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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O ano eleitoral termina no Brasil com ares de início de corrida presidencial. A última década apontou um aumento da percepção da engrenagem política e do sistema que nos governa, ao mesmo tempo em que o despertamento da direita envolveu setores tidos como outsiders, caso das igrejas.

Antes apenas ridicularizados pelos ditos intelectuais de esquerda, hoje os evangélicos são, antes de tudo, temidos. Especialmente porque a casta autoproclamada inteligente do país simplesmente não consegue entender a profundidade do fenômeno. E aí, chegam “análises” de todo tipo.

Nesta semana, o sociólogo Jessé Souza lançou um texto no UOL, refletindo sobre o futuro da esquerda no Brasil. Ao lamentar a falta de musculatura para o espectro político na tal luta por seus ideais, diz, em sua visão bastante pessimista, que o país corre o risco de se tornar como uma versão ocidental do Irã, que ele chamou de “Evangelistão”. Diz que o povo oprimido é seduzido por uma visão de mundo “mágica”, vendida pela direita, dando o exemplo de Pablo Marçal e sua retórica religiosa no contexto político.

Cada vez mais setores da extrema esquerda têm elegido o cristianismo como o inimigo a ser combatido

Cada vez mais setores da extrema esquerda têm elegido o cristianismo – especialmente a onda avivalista da segunda metade do século 20, denominada pejorativamente de “neopentecostalismo” – como o inimigo a ser combatido (já que não conseguem compreender para conquistar). E a receita está sempre na mesma visão econômica e materialista da história, sem levar em conta a dimensão espiritual da existência, tentando, assim, opor uma visão teológica à sua visão política. Laranjas e maçãs.

No entanto, esse ponto de vista parece não apenas enviesado, mas também negligencia uma série de aspectos cruciais sobre o papel da religião e a estrutura do Estado laico no Brasil.

Em primeiro lugar, é importante reconhecer que a analogia com o Irã é exagerada e simplista. O Brasil, como uma democracia consolidada, possui instituições robustas e um arcabouço jurídico que promulga a laicidade do Estado, garantindo que nenhuma religião se sobreponha às outras ou ao direito civil. Este princípio de laicidade é um dos fundamentos da Constituição de 1988, que assegura a liberdade religiosa e a separação entre Estado e religião, fornecendo um ambiente de pluralidade e respeito às diferentes crenças. Isso por si só já coloca um freio em qualquer tentativa de transformar o Brasil em um regime teocrático ou autoritário baseado em preceitos religiosos, como sugere Souza.

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Além disso, a crítica ao impacto social da religiosidade, especialmente no contexto dos chamados movimentos neopentecostais, parece desconsiderar o papel social positivo que muitas dessas instituições desempenham. Igrejas e comunidades religiosas frequentemente atuam em áreas onde o Estado é ausente, fornecendo serviços sociais, apoio emocional, e contribuindo para a coesão social em comunidades vulneráveis. Descrever essas ações como meramente “mágicas” é diminuir sua complexidade e importância no tecido social brasileiro.

Ademais, o argumento de que a esquerda está se tornando irrelevante por abdicar da luta é igualmente reducionista. A diversidade de vozes e ideologias dentro da política brasileira, incluindo novas lideranças emergentes, demonstra um cenário dinâmico e em constante evolução. A política não é estática, e as alianças e estratégias são continuamente reavaliadas com base nas demandas sociais e políticas do momento. A esquerda brasileira, longe de estar inerte, está explorando novas formas de organização e mobilização, muitas vezes fora dos moldes tradicionais, mas igualmente impactantes e influentes, como demonstrado por movimentos sociais relevantes e engajados.

A ideia de parceria entre Estado e religiões pelo bem comum pode fornecer um modelo mais nuançado e construtivo para entender a relação entre política e religião no Brasil

Com base na perspectiva de laicidade colaborativa, podemos ver como a ideia de parceria entre Estado e religiões pelo bem comum pode fornecer um modelo mais nuançado e construtivo para entender a relação entre política e religião no Brasil. A laicidade deve ser vista como um espaço de diálogo (não de neutralidade sem conversa ou, pior, de hostilidade), onde as contribuições das religiões são valorizadas e integradas nos debates públicos sem comprometer a imparcialidade do Estado. É neste espaço que se promove a liberdade religiosa e a diversidade cultural, reconhecendo as religiões como parceiras do Estado na promoção de valores sociais importantes.

Portanto, a visão de extrema esquerda, ao focar em um futuro distópico para o Brasil com base em uma leitura estreita dos eventos atuais, parece ignorar o potencial de resistência e renovação inerente à sociedade brasileira. O Brasil não é um país homogêneo em sua expressão política ou religiosa, e a riqueza de sua diversidade é uma salvaguarda contra a deriva em direção a extremos.

A laicidade colaborativa propõe um caminho em que o Estado e as religiões podem trabalhar juntos para o bem comum, respeitando suas autonomias, mas reconhecendo seu potencial de contribuição mútua. Essa abordagem não só preserva os princípios fundamentais da separação entre Igreja e Estado, mas também fortalece as bases da sociedade democrática brasileira, promovendo um futuro onde a convivência é não apenas possível, mas desejável e benéfica para todos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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