Esta semana marcou duas efemérides do calendário a respeito do tema “religião”. O terceiro domingo de janeiro, quando muitos observam o chamado “dia mundial da religião”, iniciativa dos adeptos da fé Bahá’í e que desde 1950 vêm buscando disseminar mundialmente esta celebração; e o dia 21 de janeiro, pela instituição do “dia nacional de combate à intolerância religiosa”, conforme a Lei Federal 11.635/2007.
O caso da lei brasileira guarda relação com um fato ocorrido em Salvador (BA), no conhecido bairro de Itapuã, no ano 2000. A ialorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda, morreu em decorrência de problemas cardíacos – que, conforme relatos de familiares, foram agravados por embates verbais com representantes de uma denominação cristã evangélica. Houve também invasões e depredações do terreiro, evoluindo de uma violência “simbólica” para a violência física, fato este gravíssimo no ambiente de liberdade que queremos construir como nação.
O fato é que esta data nos convida a refletir sobre estes termos: (in)tolerância, liberdade e diversidade religiosa. Como melhor observarmos estes fenômenos em nosso contexto nacional?
Já escrevemos aqui na coluna que há conceitos e abordagens errôneas sobre a liberdade religiosa. Dizer que “todas as religiões são certas” parece, à primeira vista, uma postura cool, ou seja, por que discriminar ou excluir? O extremo oposto também é perigoso, ao dizer que “todas as religiões são erradas”. Aqui o que prevalece é uma postura arrogante por parte de quem, a pretexto de uma racionalidade, busca diminuir o sentimento religioso e a busca de viver pautados pelo imperativo da consciência.
A tolerância religiosa é o comportamento esperado em uma sociedade que, por cultivar o ambiente de liberdade, vê florescer em seu meio a diversidade de credos e pensamentos
Assim sendo, tentemos entender a liberdade como um determinado espaço, um terreno, um ambiente. Este gênero de direito, chamado de “primeira geração”, é onde as potencialidades humanas podem se desenvolver: o pensamento, a expressão, o comércio, a cultura, a educação etc. Tudo o mais nos arranjos de nossa sociedade política depende da observância deste espaço que a liberdade proporciona.
Como consequência lógica do ambiente de liberdade para que os atores da sociedade possam expressar sua busca pela resposta existencial e de consciência à necessidade humana fundamental de adoração, observa-se que tal busca é diversa. Manifesta-se por uma série de fatores, rituais, explicações, por evolução da investigação especulativa ou mediante a revelação direta e, assim, constituindo um eixo de confiança, de fé. A diversidade religiosa é um fato da vida, não uma ação afirmativa. Fazê-lo é um atropelo para com o ambiente de liberdade.
Talvez aqui tenhamos, então, o momento adequado para falar do espírito do combate à intolerância religiosa.
Tolerância tem a ver com respeito. Compreensão de que a diversidade – fato observável no ambiente de liberdade – produz justamente pensamentos e visões diversas sobre o mundo, as pessoas, o divino, o caminho da felicidade e a resolução de conflitos. Justamente por isso é que o desafio do convívio social está na busca de um denominador que estabeleça quais os valores de colaboração entre todos os diversos modos para que possam convergir ao que comumente chamamos de “bem comum”. E este bem comum é alcançado tanto na prática tolerante individual ou socialmente, quanto por meio da sofisticada teia de representação de interesses que forma, na sociedade política, seu maior aparato – o Estado. Ali, ganha o nome de “interesse público”.
Agora, tolerar é condescender? Tolerar é aceitar qualquer coisa, posição ou pensamento de outrem? Embora sejam sinônimos no dicionário, parece que o alcance das palavras é um pouco diferente. A condescendência é um tipo de comportamento em que determinado sujeito adere, compactua, cede ao pensamento do outro. A tolerância, por sua vez – usada no contexto que queremos aplicar –, parece mais o resguardo da atitude de respeito pelo pensamento alheio, ainda que não se concorde com o mesmo.
Em nosso livro Direito Religioso, ao comentarmos a lei que instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, falamos o seguinte: “A tolerância religiosa implica na necessária urbanidade que os diferentes fiéis, das mais variadas religiões, devem manter no espaço público. Entretanto, tal tolerância não implica, de maneira nenhuma, na aceitação das práticas religiosas e/ou credos e crenças de um ou de outro”. Isto é: a tolerância religiosa é o comportamento esperado em uma sociedade que, por cultivar o ambiente de liberdade, vê florescer em seu meio a diversidade de credos e pensamentos. O Estado não professa religião, porém resguarda a todas as que estão comprometidas com o bem comum em sua busca transcendente.
Porém, a cada qual o que lhe pertence. Para que o respeito seja válido, a discordância também deve ter o seu espaço. Como o valor fundamental que carrega a liberdade religiosa, qual seja, a dignidade da pessoa humana, a tolerância pede que, mesmo sendo alguém frontalmente oposto ao conjunto de crença que um professe, tenha respeito pelo posicionamento do outro. E, ainda assim, possa manter hígido o sistema de crenças – e as práticas que lhe são correspondentes.
Justamente por todo este arcabouço devemos lembrar, inclusive, que a tolerância pressupõe uma certa “discriminação”. O respeito à fé alheia sem que fira a própria poderá levar a atitudes de separação, segregação às vezes. É o caso de não permitir o ingresso a determinados rituais religiosos que somente podem ser observados por iniciados; postos de educação religiosa que devem ser ocupados apenas por pessoas credenciadas pelas instituições que guardam relação com determinada confissão de fé; determinados comportamentos aceitáveis ou inaceitáveis dentro de ambientes litúrgicos, desde que constando dos documentos canônicos etc.
Que lembremos deste dia como o dia em que o respeito deve prevalecer sempre, e que palavras até convencem, mas os bons exemplos, estes arrastam.
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