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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Ideias erradas sobre a liberdade religiosa e as tragédias anunciadas

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Soldados franceses protegem a Basílica de Notre-Dame de l"Assomption em Nice, em 30 de outubro de 2020, durante homenagem a vítimas de atentado terrorista. (Foto: Valery Hache/AFP)

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Mais uma vez, um ataque terrorista. Mais uma vez a França. Porém, desta vez, dentro de uma Igreja. Sempre existe um requinte de crueldade a mais neste tipo de ação. Três pessoas mortas (inclusive a brasileira Simone Barreto Silva), e com uma decapitação. Tudo aos berros de “Allahu Akbar” (“Alá é grande”), pronunciados pelo terrorista tunisiano Brahim Aouissaoui.

Padre ortodoxo, dias depois, é baleado ao fechar a igreja em Lyon, ficando entre a vida e a morte. Um suspeito havia sido preso e, logo depois, solto, ante a falta de evidências, como disse o gabinete da promotoria.

Finalmente, terminando a semana sangrenta, um ataque a tiros em Viena (Áustria) deixou saldo de (até agora) quatro mortos e 15 feridos, reivindicado pelo (extinto?) Estado Islâmico. A mostra de que o multiculturalismo é realmente um problema sociológico definitivo do século 21 se confirma novamente.

Dizer que todas as religiões estão certas é tão falacioso quanto afirmar que todas as religiões estão erradas. Ambas são tentativas de acomodação que, no fim, não agradam ninguém

O que tais exemplos de grotesco comportamento humano mostram neste campo das democracias modernas, onde as gerações de direitos vão colidindo com os espaços de poder e a participação das parcelas de povos culturalmente desfigurados?

Há um erro fundamental no entendimento do fundamento das liberdades civis quanto à manifestação do pensamento religioso. A liberdade de consciência e crença religiosa é a grande matriz da chamada primeira geração de direitos fundamentais. E o é por razões históricas – crer é um fato humano de tempos imemoriais e preexistente ao Estado – e por razões lógicas, posto que não há vida plena para seres racionais sem atender ao imperativo de suas consciências. O bem viver não é um colecionar inútil de desejos e vontades, mas um exercício constante de virtudes (mesmo que impliquem em renúncias a impulsos pessoais) na direção do bem comum, e que gera a satisfação da dignidade existencial.

Por causa do embaralho produzido pelos pensadores ocidentais modernos, chegou-se a dois erros fundamentais quanto à abordagem da crença em relação à vida em sociedade. A busca por acomodar modos conflitantes de pensar em um mesmo espaço, gerando tensões e disputas de poder que podem levar a comportamentos totalitários, também passou a compartimentar a fé religiosa em categorias. E assim surgem falácias lógicas quanto à liberdade religiosa e ao modo como deveriam ser abordadas.

O primeiro erro é dizer que todas as religiões estão certas. Esta afirmação parece “democrática” e liberal, mas é arbitrária e coloca quem a diz acima da consciência daqueles que creem de modo diverso. É uma tábula rasa, um nivelador que revela desconhecimento tanto sobre as profundezas da alma humana quanto da própria história de nossa espécie, uma vez que a fé transcendente sempre moveu o espírito em direção a respostas privadas e públicas. É uma medida politiqueira para agradar a todos, mas que, no fim, não agrada a ninguém.

O segundo erro é dizer, ao contrário, que todas as religiões estão erradas. A afirmação tem o mesmo efeito da primeira quanto à tentativa de nivelamento, porém apenas mostra que, neste caso, há um desprezo intrínseco pela fé religiosa. Ou seja, além de buscar “democratizar” o ambiente dizendo que religião não se discute – para que ninguém se ofenda ou coisa parecida –, passa a ofender objetivamente qualquer manifestação de fé. Isto não é liberdade, mas tirania.

Como, então, entender a liberdade religiosa de forma plena e aplicável de acordo com os valores que moldaram a nossa civilização?

Foi justamente um dos filósofos incumbidos de construir a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o francês Jacques Maritain, que desenvolveu um método orgânico para que pessoas de credos, ideologias, pensamentos e práticas diferentes pudessem ter suas vozes incluídas naquilo que nos une como pessoas e um conjunto mínimo de valores fundamentais a serem cristalizados como direitos humanos no contexto de uma sociedade plural, mas fiel aos seus imperativos de consciência. Diz o filósofo, em sua obra O Homem e o Estado:

Uma democracia genuína implica uma concordância fundamental entre espíritos e vontades com relação às bases da vida em comum. Essa democracia tem consciência de si mesma e de seus princípios, e deve ser capaz de defender e de promover sua própria concepção de vida social e política. Deve ser portadora, em si mesma, de um credo humano comum, o credo da liberdade. O erro do liberalismo burguês consistiu em conceber a sociedade democrática como uma espécie de arena na qual todas as concepções relativas às bases da vida comum, mesmo as mais destruidoras da liberdade e da lei, defrontam-se com a pura e simples indiferença do corpo político, enquanto competem perante a opinião pública em uma espécie de mercado livre de ideias-mestras, sadias ou envenenadas da vida política. A democracia burguesa do século 19 foi neutra mesmo em relação à liberdade. Assim como não possuía nenhum bem comum real, também não tinha nenhum pensamento comum real. Não possuía cérebro próprio e sim um crânio neutro e vazio forrado de espelhos. Com isso não é de se admirar que, antes da Segunda Guerra Mundial, em países que a propaganda fascista, racista ou comunista ia perturbar ou corromper, essa democracia se tornasse sem nenhuma ideia de si mesma e sem nenhuma fé em si mesma, sem nenhuma fé comum que lhe permitisse resistir à desintegração.

Essa “concordância fundamental”, dizia ele, deve ser fruto de um acordo pragmático em que, por caminhos diversos – livres à nossa consciência –, cheguemos a uma amizade mútua sobre o conjunto de valores comuns. Podemos pensar que uns caminham para o Céu enquanto outros vão para o Inferno; porém, enquanto caminhamos, podemos ser amigos e companheiros pelo bem comum da sociedade terrena.

A ideia de transcendente molda nosso pensamento enquanto vivemos sob a presente ordem natural. A liberdade religiosa é, definitivamente, a grande barreira que nos separa do totalitarismo absoluto de quem manobra o poder e da possibilidade de uma comunidade de fé prosperar e fazer florescer a sociedade política em seu redor. Não deixemos que os nefastos exemplos europeus manchem a tradição brasileira de cooperação, amizade e liberdade de convivência entre os diferentes credos, que, mesmo com diferenças fundamentais sobre a vida no além e quem entrará na Cidade de Deus, concordam que há espaço para respeito e dignidade humanas enquanto vivemos aqui na cidade dos homens.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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