Realizado anualmente antes da reunião de cúpula do G20, o Fórum Inter-Religioso do G20 foi criado em 2014 e se propõe a trazer a voz dos atores religiosos para os temas discutidos pelas economias mais influentes do planeta, que formam o Grupo dos 20. Representando cerca de 80% da produção econômica mundial, dois terços da população global e três quartos do comércio internacional, os líderes do G20 se reúnem ao longo do ano para discutir temas financeiros, socioeconômicos e questões humanitárias alinhadas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Assim, o G20 é um dos principais fóruns para a cooperação econômica internacional.
Neste ano, o Fórum Inter-Religioso do G20 ocorreu em Brasília, com a presença de diversas lideranças mundiais, tais como Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e chair do grupo The Elders, além de ministros de Estado, secretários, acadêmicos e líderes religiosos. O evento também contou com a participação do vencedor do Prêmio Ives Gandra de Liberdade Religiosa do IBDR, Aloísio Cristovam dos Santos Júnior; do membro do IBDR Thiago Biazin; e de Thiago Vieira, um dos responsáveis por esta coluna, a quem se referem as narrações em primeira pessoa que vêm a seguir.
A discordância teológica é o oxigênio da democracia, pois são as vozes diferentes no espaço que permitem à democracia e ao ser humano florescerem
Com o título “Não deixar ninguém para trás: O bem-estar do planeta e de seu povo”, o Fórum começou com um coquetel na noite do dia 19, tendo suas primeiras plenárias no dia 20, e encerrando-se no dia 22 de agosto. No primeiro dia de plenárias, no auditório principal, tivemos a oportunidade de participar da sessão principal do período da tarde, como um dos painelistas, em conjunto com Christine Alves Bastos, do Coletivo Mulheres do Axé do DF e Entorno; Girrad Mahmoud Sammour, presidente da Associação Nacional de Juristas Islâmicos (Anaji); André Fagundes, pesquisador associado ao Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (Cedire); Bruno Silva Augusto, vice-presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PR; Andrea Letícia Carvalho Guimarães, pesquisadora associada ao Cedire; Samuel Gomes de Lima, da Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania; Odacyr Carlos Prigol, diretor da Área Brasil da J. Reuben Clark Law Society; Evaldo Dias Lima Filho, assessor em Diálogo Inter-Religioso da Rede Amazonizar; Martinho Arnaldo Campos Carmona, deputado estadual e pastor evangélico; Damaris Moura Kuo, grande liderança nacional sobre o tema da liberdade religiosa e subprefeita de São Paulo; e Garey Doxey, diretor associado ao Centro Internacional de Estudos em Direito e Religião da Universidade BYU. O painel discutia a liberdade religiosa no Brasil e foi moderado por Flavio Alegretti de Campos Cooper, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-15); e Renata Bahrampour, coordenadora da Área de Defesa do Escritório de Assuntos Externos da Comunidade Bahá’í do Brasil.
Na minha fala, tive a oportunidade de destacar a primeira parte do inciso VI do artigo 5.º da Constituição brasileira, que assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. Esse princípio é um pilar fundamental na construção de uma sociedade democrática, conforme ressaltado pela Corte Europeia de Direitos Humanos (no caso Kokkinakis) e pela doutrina constitucional internacional, como nos trabalhos de Robert Alexy, Jorge Miranda, Ricardo Garcia Garcia e Jónatas Machado. As Nações Unidas, por meio da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou em Convicções, também confirmam, no artigo 1.º, § 2.º da referida declaração, que “ninguém será objeto de coação capaz de limitar a sua liberdade de ter uma religião ou convicções de sua escolha”.
No Brasil, o Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região recentemente condenou uma empresa a pagar indenização por danos morais a uma trabalhadora, religiosa de matriz africana, impedida de usar colares religiosos no ambiente de trabalho, demonstrando a essencialidade e inviolabilidade da crença. Já o STF, na ADPF 811, por meio do voto do relator, ministro Gilmar Mendes (pág. 11-12 do acórdão), destacou que, embora o direito de exercício de uma religião possa estar sujeito a certas restrições em situações extremas, o direito à liberdade de pensamento, consciência e crença é absoluto e inviolável (talvez o único acerto de seu voto nesta ADPF).
Esses aparatos doutrinários e jurisprudenciais formam o âmbito de proteção da liberdade de crença tida como inviolável pelo Direito brasileiro. Assim, a crença de uma pessoa religiosa é inviolável e nem o Estado, nem ninguém pode dizer como uma pessoa religiosa deve ou não adorar sua divindade, relacionar-se ou prestar seu culto a ela. Apenas e tão somente o seu exercício pode ser restringido, em situações excepcionais, desde que previamente previstas em lei, nos termos do artigo 18.3 do Pacto de Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário.
Assim sendo, as liberdades de consciência e crença são invioláveis. Nem o Estado, nem qualquer outro grupo deve interferir internamente na crença e convicções dos religiosos. Dito de outra forma, nenhum ator externo à respectiva confissão de fé tem o direito de alterar sua teologia ou crença; esse é o direito inviolável reservado aos próprios fiéis e em seu âmbito interno. Respeitar essa inviolabilidade é essencial para manter uma sociedade democrática e pluralista.
Após as ponderações de todos os painelistas, a plateia presente pôde dirigir uma pergunta aos participantes, que foi direcionada a mim. A dúvida essencialmente referia-se à situação de “discurso de ódio”, e quando ele se configuraria. Respondi que é necessário diferenciar situações de discordâncias teológicas de crimes contra a honra ou até mesmo crimes de discriminação. A discordância teológica é o oxigênio da democracia, pois são as vozes diferentes no espaço que permitem à democracia e ao ser humano florescerem. Já a discriminação ocorre quando ultrapassadas as três etapas do critério trifásico de Bobbio, conforme decisões do STF e STJ.
Apenas com a inviolabilidade da crença teremos uma verdadeira democracia e o florescimento humano, e foi com essa mensagem que o IBDR encerrou sua participação no Fórum Inter-Religioso do G20.
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