Plenário do STF.| Foto: Reprodução
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Quando menos esperamos os ataques acontecem. Nesta semana só o que se fala é sobre a aprovação, pelo Senado Federal, da chamada “lei das fake news”. Nossos colegas aqui na Gazeta, Guilherme Macalossi e J. R. Guzzo escreveram textos esclarecedores sobre quão perigosa e absurda é a proposta legislativa aprovada como um “sinal” ao governo Bolsonaro de que o poder é balanceado e os interesses múltiplos devem se acomodar para vários atores ora em palco. Eis o jogo político, eis a vida como ela é.

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Neste cenário que cria “conselhos” para determinarem o que é ou não correto em termos de compartilhamento de notícias, obrigação dos meios eletrônicos ao rastreio e armazenamento sobre as mensagens compartilhadas entre usuários de redes sociais e meios de comunicação para ficarem à disposição das “autoridades”, como ficam nossas liberdades? O que está em jogo neste vale-tudo do establishment pelo controle autoritário sobre os corpos e as mentes aqui no Brasil?

Enquanto esperamos que esta aberração jurídica seja detida na Câmara dos Deputados, a legítima “casa do povo”, que detém o mandato dos mais de 200 milhões de cidadãos brasileiros que amam as liberdades e confiaram a seus representantes o dever de cumprir e fazer cumprir a constituição, temos que ir discutindo, como sociedade, as várias nuances de medidas como esta.

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Uma coisa é certa, desde sempre: quem tem poder dele se alimenta e é insaciável. Não há tal coisa como seres humanos desprovidos de interesses próprios ou corporativos e que “exerçam” o poder como um serviço altruísta pelo bem comum. O bem comum é alcançado na medida do possível, passando pelo pântano dos desejos conflitantes, mas balizados por salvaguardas, pedras seguras postas pelos valores que fundamentam uma nação. E no nosso caso estão muito bem destacados lá no art. 1º da constituição da República de 1988.

O art. 1º diz o seguinte:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
V - o pluralismo político. (grifamos)

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Notem bem: fundamento. Rocha matriz. Chão. A partir destes valores é que os vários desdobramentos ao longo da nossa extensa Carta Magna vão fazendo sentido e inspirando a organização da comunidade política em busca de uma vida boa e feliz para nosso povo.

O primeiro ponto é que somos constituídos em Estado Democrático de Direito. Ou seja: somos uma nação onde as ideias mais pertinentes são adotadas, com a pertinência limitada por valores universais que promovam o bem e restrinjam o mal – ou seja, reconhecemos que “bem” e “mal” são realidades e não meras construções – e são obrigatoriamente observadas pela força da norma jurídica, da “lei”, que é sobre todos indistintamente.

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O segundo ponto é que temos na cidadania um elemento crucial para nossa vida. E não nos enganemos: é impossível uma separação hermética entre uma “vida privada” e uma “vida social”. A humanidade é gênero social por natureza. Não estamos por aqui apenas para viver, mas para conviver. E cidadania abrange a totalidade de aspectos da vida humana em sua complexidade, desde a resposta às suas questões existenciais, e, a partir disso, como conduzir-se. É, portanto, da construção desta noção dentro do frame ocidental que os valores da liberdade sejam imperativos para que se desenrole um conviver responsável e sadio.

O terceiro é que nos reconhecemos como dotados de uma dignidade intrínseca pelo fato de pertencermos à família humana. O ser humano é, de per se, digno. Mas, combinando com o elemento anterior, também tem-se que no buscar de um propósito de vida que transcenda ao mero fato biológico e à busca da sobrevivência elementar achamos aquela dignidade existencial, o que nos conecta com o próximo, que nos move para o bem. E é na junção dos dois elementos fundamentais, cidadania e dignidade humana, que formam o amálgama matriz das liberdades civis fundamentais que veremos posteriormente consagrados no famoso art. 5º do Texto constitucional.

A partir desse fundamento é que vemos como sendo, então, a liberdade religiosa, mãe de todas as liberdades, com já escrevemos aqui. Mas o ponto hoje é pensar nesta liberdade matricial também como um fator limitador da própria ação do Estado.

O argumento é simples: se houver a chance de o Estado interferir na vida do cidadão a ponto de constrangê-lo no ambiente mais privado de sua existência, qual seja, sua consciência, é fato que poderá fazer qualquer coisa.

Assim sendo, quando o art. 5º, inciso VI da constituição afirma que “é inviolável a liberdade de consciência e crença”, com mais uma série de garantias e proteções ao exercício da fé em dimensões particulares ou comunitárias, litúrgicas ou de natureza prática (como não privar de direitos qualquer um por motivo religioso) o povo diz ao Estado: o seu limite está claro. Não avance nenhum centímetro na liberdade individual de viver como sua consciência lhe dita! Assim sendo, quando vemos iniciativas como a lamentável votação desta semana no Senado, que por tantas vezes se arrogou de ser um “poder moderador” na República, estamos diante do mesmo tipo de aberração que a história repetidamente nos alerta sobre a sanha de abocanhar, tomar poder à força e subjugar o povo a vontades e desejos dos iluminados que até podem querer governar para, mas nunca pelo povo.

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Não será desta vez, esperamos, que triunfe o totalitarismo, pois, repisamos, cremos que a Casa do povo não o permitirá. Temos nossos temores quanto à regulação de eventual norma desta natureza por nossa corte constitucional. Afinal, por lá, parece que a própria Constituição se mostra “inconstitucional”.