23 de setembro de 2022: a data em que foi assinada a decisão monocrática, em sede liminar, devolvendo o mandato parlamentar do vereador Renato Freitas (PT), cassado por seus pares em Curitiba. Assina Luís Roberto Barroso, o relator. Podia ser mais uma decisão no STF, de tantas que são assinadas e publicadas diariamente. Mas esta decisão é diferente.
Em 5 de fevereiro de 2022, enquanto ocorria uma missa na igreja católica Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito, Freitas liderou um movimento popular às portas e, depois do fim da celebração, dentro da nave do templo. Motivo: protestar contra dois homicídios de grande comoção nacional, nos quais foram vítimas o congolês Moïse Mugenyi, espancado até a morte em quiosque de praia, e Durval Teófilo Filho, morto por seu vizinho ao ser supostamente “confundido com assaltante”. A causa do protesto é justa e importante. Na coleção dos maiores erros da humanidade está o racismo, e devemos sempre lutar contra ele.
O vereador, porém, escolheu a porta e o interior de uma igreja para seu protesto. Segundo o ministro Barroso, a Igreja do Rosário foi escolhida justamente por ter sido construída para acolher e abrigar a fé da população negra escravizada, que não podia frequentar as outras igrejas da cidade.
Para devolver o mandato a Renato Freitas, Barroso mudou seu entendimento sobre a aplicação da Súmula Vinculante 46
Tal conduta foi denunciada na Câmara Municipal, resultando em sua cassação por quebra de decoro parlamentar, visto que seu ato causou grande comoção negativa entre religiosos da comunidade curitibana e do Brasil inteiro, enquadrando-se nos dispositivos legais previstos no Código de Ética e Regimento Interno da Câmara. O Decreto Federal 201/67, que trata dos crimes de responsabilidade do prefeito, denomina a conduta como “infração político-administrativa”, conforme seu artigo 4.º, X.
Insatisfeito, o cassado entrou na Justiça e teve seu pedido liminar de reintegração à Câmara negado pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Ato seguinte, ingressou com a Reclamação Constitucional 55987/PR, que resultou na impensável decisão ora comentada.
É um lugar comum que as decisões judiciais são feitas de precedentes. Os norte-americanos os chamam de leading case; os brasileiros, de “jurisprudência”. A partir daí, as demais decisões são quase um “copia e cola” para as razões de provimento ou improvimento, observadas as peculiaridades de cada caso, quando necessário. Não poderia ser diferente. Milhares de casos de um país continental desaguam no STF, que tem competência para julgar quase tudo que acontece no Brasil, visto que, na visão do recorrente, sempre existe uma afronta constitucional sobre a qual o Supremo tem de se manifestar. Assim acontece nas Reclamações Constitucionais. Mas que tipo de recurso é esse?
O STF, além da jurisprudência, possui o sistema de súmula vinculante, criado pela Emenda Constitucional 45, que, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, permite ao STF aprovar súmula que terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, nos termos do artigo 103-A da Constituição. Assim, o § 3.º do mesmo artigo prevê: “Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”. Sempre que uma decisão judicial violar diretamente uma súmula vinculante do STF, a parte lesada poderá ingressar diretamente no Supremo para cassar tal decisão. Foi isso que o vereador Renato Freitas tentou e conseguiu, em sede liminar.
Aqui pedimos licença ao leitor para usar um pouco do terrível “juridiquês”. O problema é que o STF desenvolveu o conceito de “aderência estrita” para admitir o ingresso de uma Reclamação Constitucional. “Aderência estrita” significa que o ato impugnado, objeto da Reclamação, deve ser exatamente igual à súmula vinculante paradigma. No caso, a Súmula Vinculante 46 diz que “a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são da competência legislativa privativa da União”. Isto é, apenas as hipóteses referentes aos crimes de responsabilidade são de competência privativa da União; nas demais não, os municípios podem legislar.
É o que está escrito e o STF tem entendido assim. Todos os casos envolvendo municípios em que os prefeitos são julgados por crimes de responsabilidade devem seguir o rito do Decreto 201/67, ou seja, da lei federal. Os casos de infração político-administrativa, que não são crimes, podem ser regulados de forma diferente pelo município. Encontramos diversos precedentes nesse sentido, inclusive muitos da caneta do próprio ministro Barroso: é o caso das Reclamações 42.923/MG (de 4 de setembro de 2020), 43.183/RJ (de 14 de setembro de 2020), 47.189/PR (de 15 de maio de 2021), 39.776/GO (de 25 de março de 2020), 42.728/SP (de 18 de agosto de 2020), 42.489/SP (de 1.º de setembro de 2020) e 42.471 (de 4 de setembro de 2020). E o próprio ministro Barroso cita precedentes de seus colegas no mesmo sentido na Reclamação 47.189/PR: “14. Nesse sentido, são os seguintes precedentes do STF: Rcl 38.746, Rel. Min. Alexandre de Moraes; Rcl 31.759, Relª.. Minª. Cármen Lúcia; Rcl 29.264, Rel. Min. Marco Aurélio; Rcl 27.896, Rcl Min. Alexandre de Moraes”. Enfim, as referências são muitas e haveria ainda mais delas a citar.
Em razão de um “contexto de especial relevância constitucional” é possível separar um processo dos demais e julgá-lo de forma diferente? Certamente que não
Sorteamos aqui uma dessas decisões para colacionar o pensamento do ministro Barroso sobre “aderência estrita” em casos envolvendo a cassação de vereadores por infração político-administrativa: “O conhecimento da reclamação também exige estrita aderência entre o ato impugnado e o paradigma supostamente violado”. E continua: “A situação dos autos, no entanto, refere-se a processo de cassação por denúncia de prática de ato vexatório ou indigno capaz de comprometer a dignidade do Poder Legislativo municipal, infração prevista no art. 89, VI do Regimento Interno da Câmara Municipal de São Miguel do Iguaçu”, para, ao fim, concluir: “Essa hipótese não está abrangida pelo paradigma invocado na presente reclamação, que se limita a afastar a competência dos estados e municípios para editar atos normativos, tanto de direito substantivo ou adjetivo, relacionados a crimes de responsabilidade (...) Diante do exposto, com fundamento no art. 21, § 1.º, do RI/STF, nego seguimento à reclamação, ficando prejudicado o pedido liminar”.
Quem assina é Luís Roberto Barroso, que cita, também nessa decisão, diversos precedentes. Ou seja, se a cassação se deu por infração político-administrativa, não há afronta à Súmula Vinculante 46; logo, o caso não interessa ao STF. Mas para devolver o mandato a Renato Freitas o ministro mudou seu entendimento e, agora, para ele crimes de responsabilidade e infrações político-administrativas dão na mesma; afinal, segundo suas palavras, “o processo legal no processo de cassação do vereador está inserido num contexto de especial relevância constitucional, já que tal processo foi instaurado em razão da participação de parlamentar negro em protesto contra o racismo nas dependências da Igreja”.
Então, em razão de um “contexto de especial relevância constitucional” é possível separar um processo dos demais e julgá-lo de forma diferente? Andou muito bem o Grupo de Estudos Constitucional e Legislativos do IBDR em seu parecer, ao dizer que “a Constituição Brasileira proíbe a criação de tribunais de exceção, ou seja, instituições ou técnicas de julgamento (embora sequer assim possa ser nomeada a postura do relator) que apreciem fatos de forma distinta da prevista na normatização pátria”.
O ministro Barroso, para mudar suas dezenas de precedentes e de seus pares, afirma que o caso deve ser julgado sob uma “perspectiva especial”, ao arrepio da própria Constituição que jurou defender e guardar, e que, no artigo 5.º, XXXVII, diz que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Mas não paramos por aqui. E pedimos perdão ao leitor pelas citações longas, no entanto necessárias para expor o argumento. O ministro entra no mérito do caso e crava: “Por isso, a despeito de haver decisões desta Corte contrárias à aplicação da Súmula Vinculante 46 em casos de perda de mandato por prática de infração político-administrativa, a cassação do vereador em questão ultrapassa a discussão quanto aos limites éticos de sua conduta, envolvendo debate sobre o grau de proteção conferido ao exercício do direito à liberdade de expressão por parlamentar negro voltado justamente à defesa da igualdade racial e da superação da violência e da discriminação que sistematicamente afligem a população negra no Brasil”.
Isto é, se você for um parlamentar negro e estiver defendendo a igualdade racial e a superação da violência, pode praticar atos que são vedados pela Constituição. Ser parlamentar, ser negro e defender a igualdade racial está acima da Constituição brasileira. Diz o artigo 19, I da Constituição (destaques nossos) que: “É vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. A Constituição proíbe terminantemente que o funcionamento dos cultos seja embaraçado e, no artigo 5.º, VI, assegura que os cultos são invioláveis: “VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Se você for um parlamentar negro e estiver defendendo a igualdade racial e a superação da violência, pode praticar atos que são vedados pela Constituição. Ser parlamentar, ser negro e defender a igualdade racial está acima da Constituição brasileira
Entretanto, a Constituição do nobre ministro Barroso, ao que nos parece, é diferente da Constituição Federal. Nela, há um parágrafo adicional no artigo 5.º e outro no artigo 19, que diz mais ou menos o seguinte: “A garantia constitucional da inviolabilidade de culto religioso e a vedação de embaraço não se aplica ao ativista identitário negro com mandato parlamentar, em sua luta de promoção à igualdade racial”.
Como se não bastasse, Barroso também criou uma inimputabilidade nova no Código Penal brasileiro. O CP tipifica, por exemplo, o crime de homicídio no artigo 121; de furto, no artigo 155; de depredação de patrimônio (dano), no artigo 163; e também tipifica o crime contra o sentimento religioso, da seguinte forma: “artigo 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Quando alguém quebra uma vidraça ou mata alguém, fica fácil identificarmos que o primeiro cometeu o crime de dano, previsto no artigo 163 do Código Penal, e o segundo cometeu o crime de homicídio, pelo artigo 121. Da mesma forma, quando alguém perturba um culto religioso a ponto de ele ter de ser encerrado e, de quebra, invade o templo religioso para protestar, parece fácil identificar que estamos diante da prática do crime contra o sentimento religioso: “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso”. Pelo menos em tese, claro.
Mas não nos esqueçamos de que existe a inimputabilidade instituída pelo ministro Barroso. É o parágrafo 2.º do Código Penal Barrosiano: “É isento de qualquer pena o agente que for ativista identitário negro, com mandato parlamentar e estiver lutando em defesa da igualdade racial”.
A Constituição e o Código Penal do nobre ministro Barroso, ao que nos parece, são diferentes da Constituição Federal e do Código Penal brasileiro
Esses dois trechos são invenção nossa, claro, para que os leitores entendam o risco para a democracia e para o Estado Democrático de Direito: um ministro do Supremo, na canetada, cria ao seu bel-prazer, de acordo com suas ideologias e visões de mundo, exceções à Constituição Brasileira e hipótese nova de inimputabilidade no Código Penal. Isto é impensávelem um Estado de Direito em que todos estão submetidos à lei, inclusive os ministros do Supremo. Quando se trata de matéria penal, a situação é ainda mais grave: a Constituição prevê expressamente que compete à União legislar sobre matéria penal (artigo 22, I), inclusive sendo vedada a elaboração de medidas provisórias que versem sobre matéria penal (artigo 62, I). Em uma tacada, Barroso:
1. Atropela precedentes da corte, inclusive de sua própria lavra;
2. Faz malabarismos jurídicos para admitir Reclamação Constitucional cujo objeto não possui aderência estrita com a Súmula Vinculante 46;
3. Cria um tribunal de exceção;
4. Legitima violações à liberdade religiosa, desde que a causa seja justa;
5. Cria exceção constitucional à vedação de embaraço de culto;
6. Cria isenção de pena (inimputabilidade) para o tipo penal do artigo 208 do Código Penal;
7. Induz ao pensamento que, para defender causas como a igualdade racial, até crimes podem ser cometidos;
8. Rompe com o Estado de Direito.
O presidente que for eleito neste mês de outubro indicará dois ministros ao Supremo; Barroso foi indicado por Dilma Rousseff, do PT
Poderíamos enumerar mais aberrações, como o fato de a decisão ir muito além dos limites estipulados pela própria inicial da Reclamação, como muito bem disse o GECL do IBDR em seu parecer, no que denominamos de decisão “ultra petita”, mas paramos por aqui. Fica a sensação de vivermos um clima como o da Revolução Francesa, quando quem não concordava com a causa da liberdade, igualdade e fraternidade perdia a cabeça na Bastilha.
Amanhã, 2 de outubro, teremos eleições gerais. Não podemos esquecer que o presidente eleito indicará dois ministros ao Supremo, e que Barroso foi indicado por Dilma Rousseff, do PT. Talvez o leitor tenha muitas reservas a Bolsonaro, mas votar no PT pode resultar em mais ministros como Barroso. Vejam o exemplo do ex-juiz federal Sergio Moro: mesmo com todos os problemas de seu desembarque do governo federal, ele deixou claro, na reta final de sua campanha, que não há como votar no PT.
Pense nisso, leitor; ainda dá tempo.
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