Tem sido um semestre bem, digamos, pródigo em simbologia política com apelo religioso, especialmente gerando acenos ao público evangélico. Em setembro, Lula sancionou a lei que reconhece as influências do cristianismo como “manifestação cultural”, e sancionou o “Dia Nacional da Pastora Evangélica e do Pastor Evangélico”. Agora, no último dia 15, sancionou lei que cria o “Dia Nacional da Música Gospel”.
A retórica religiosa ficou mais inflamada nesta semana, durante comício em Camaçari (BA), no último dia 17. No meio do discurso, o presidente soltou esta pérola: “Ninguém foi mais de esquerda do que Jesus. Ninguém brigou mais pelos pobres do que Jesus Cristo”.
Lula – a viva alma mais honesta deste país – busca fazer acenos políticos dos mais variados, o que é o normal no jogo que chamamos “presidencialismo de coalizão”. É uma tarefa difícil para qualquer um, seja à esquerda ou à direita, em razão de vários fatores na tensão dos sistemas de poder. Porém, algo que salta aos olhos na fala é justamente o que a esquerda sempre criticou no bolsonarismo: tentar encapsular uma visão religiosa através das lentes da política.
O ministério de Jesus não se envolveu diretamente na política de seu tempo, nem advogou por uma ideologia política específica
Não é de hoje que o lulopetismo anda de mãos dadas com a religião para reverberar sua agenda. É conhecida de todos a estratégia das Comunidades Eclesiais de Base católicas dos anos 70 e 80; sabe-se também que, devido à ascensão dos evangélicos em termos populacionais, perdeu-se esta conexão entre mensagem religiosa e aspirações progressistas. E, com o despertamento político conservador da última década, a visão de campos à direita amalgamou os reclamos da chamada “pauta de costumes” identificados com uma crescente massa de evangélicos (chegando a impressionantes 40% da população brasileira).
Mas por que é uma falácia tentar identificar Jesus com a esquerda?
Primeiro, porque tenta confundir mentes desavisadas a partir de categorias políticas contemporâneas a um contexto histórico e religioso completamente diferente. Essa ideia é anacrônica, já que conceitos como “esquerda” e “direita” surgiram apenas na política moderna após a Revolução Francesa, e não existiam na Israel do século 1.º.
O ministério de Jesus não se envolveu diretamente na política de seu tempo, nem advogou por uma ideologia política específica. O relato bíblico mostra sua mensagem focada em questões espirituais: Jesus Cristo é o Filho de Deus, o cumprimento das profecias que apontam um plano de Deus para a salvação da humanidade – tanto a raça humana no todo, quanto cada pessoa humana em sua individualidade.
E mensagem evangélica aponta, ainda, para uma ética derivada desta “metanoia”, da conversão de um caminho de morte eterna para a vida eterna, refletida nesta existência em atos de amor, perdão, justiça e compaixão que transcendiam preocupações políticas.
Jesus critica tanto líderes religiosos quanto autoridades civis, sempre do ponto de vista espiritual (Jesus é homem e Deus ao mesmo tempo, e dissociar isto do único relato de sua mensagem, a Bíblia, é intelectualmente desonesto), não ideológico. Seus ensinamentos são universais e voltados para todos, independentemente de posição social, econômica ou política.
Reduzir suas palavras a uma agenda política é limitar a amplitude de suas ações e encapsular em um discurso pretensamente bom, mas enganoso, o núcleo de uma mensagem endereçada à alma humana para preenchê-la de sentido transcendente. Por exemplo, o chamado para amar o próximo e cuidar dos pobres não se traduz diretamente em um posicionamento de “esquerda” ou “direita”, mas em um princípio ético e espiritual que pode ser interpretado de várias formas.
Ao longo da história, pessoas de diferentes espectros políticos têm encontrado inspiração nos ensinamentos de Jesus. Movimentos de direita enfatizam valores morais e conservadores associados ao cristianismo, enquanto alguns de esquerda destacam o cuidado com os marginalizados. Ambos podem encontrar apoio nos Evangelhos, mostrando que Jesus não se limitou a uma posição política específica, mas ofereceu uma mensagem universal.
Reduzir Jesus a uma figura de esquerda é criar uma caricatura que beira à blasfêmia em termos teológicos, e é inadequada em termos políticos
Um dos temas centrais de seus ensinamentos é o "Reino de Deus", que Jesus afirmou não ser deste mundo, indicando que sua missão não era estabelecer um sistema político terreno, mas apresentar uma realidade espiritual que transcende as estruturas humanas. Isso contradiz a ideia de que ele estivesse alinhado a qualquer corrente política.
Além disso, a visão de que Jesus era de esquerda frequentemente resulta de uma interpretação seletiva dos Evangelhos, que foca em passagens sobre justiça social e ignora outras que desafiam o poder estatal, como “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Reduzir Jesus a uma figura de esquerda é criar uma caricatura que beira à blasfêmia em termos teológicos, e é inadequada em termos políticos.
Querer torcer o conteúdo espiritual através de uma retórica com palavras carregadas de sentido ideológico é transformar o “bálsamo” do Evangelho no “ópio” com que a própria esquerda tenta entorpecer as consciências para um controle político, social e – se pudessem – espiritual de mentes e corações para seu projeto de poder. Depois de ouvir no Círio de Nazaré que iria “roubar a santa”, agora Lula quer roubar o próprio Filho de Deus para os seus propósitos.
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