A novela das regulamentações na internet está longe de acabar. Depois do susto com o PL 2.630, conhecido como “PL das Fake News”, “PL da Censura” ou “PL da Mordaça”, os campeões do controle e da censura on-line voltaram à carga com um novo plano: incluir no Código Civil um Livro do Direito Civil Digital – em outras palavras, censura.
Desde 2002, quando o Código Civil atual foi criado, a tecnologia avançou a passos largos. Lembram-se do Orkut? Aquela rede social surgiu em 2004 e desapareceu em uma década, dando lugar a gigantes como Facebook, X e Instagram. Naquela época, a internet discada era o que havia de mais moderno. Hoje, temos supercomputadores no bolso, acessíveis em qualquer lugar com tecnologia 5G e até mesmo em celulares e relógios de pulso.
Esses avanços não só facilitaram a vida, mas também descentralizaram a veiculação de notícias. A grande mídia perdeu o monopólio da informação, e qualquer cidadão bem conectado pode agora dar uma notícia antes dos telejornais. Estes, aliás, passaram a ser muito mais programas de opinião, com seus vieses ideológicos à mostra, enquanto as redes sociais desmascaram distorções dos grandes grupos de comunicação.
Com todas essas mudanças, é natural que a sociedade precise se ajustar ao risco-benefício dessas novas ferramentas de comunicação. A internet acabou de completar 30 anos, e as redes sociais têm cerca de 20 anos. Para comparação, a obrigatoriedade do cinto de segurança nos EUA só veio em 1968, 60 anos após o início das vendas do Ford Model T. A diferença é que o cinto de segurança nunca restringiu o direito de ir e vir, enquanto a regulação proposta para as redes sociais pode sufocar a liberdade de expressão, o principal direito exercido na internet.
Com as regras previstas no Novo Código Civil, as empresas de internet e mídias sociais estarão sob vigilância constante e preferirão censurar uma grande quantidade de conteúdo para evitar penalizações
O IBDR continua seu trabalho crítico do projeto de revisão do Código Civil, por meio de uma comissão especialmente formada para essa análise. Assim, alertamos que a proposta de um novo livro dentro do Código Civil para a regulação do Direito Digital pode ameaçar a liberdade de expressão e a livre circulação de ideias no nosso país.
Um dos artigos da proposta exige que as plataformas identifiquem, analisem e avaliem os riscos sistêmicos dos conteúdos ilícitos, incluindo efeitos reais ou previsíveis sobre direitos de personalidade, processos eleitorais, discurso cívico, saúde e segurança pública. As redes sociais terão de monitorar e limitar conteúdos potencialmente danosos, decidindo o que pode e o que não pode ser dito.
Outro artigo responsabiliza as plataformas administrativa e civilmente pelos danos causados por conteúdos gerados por publicidade e terceiros, caso descumpram os deveres previstos no Código. Ou seja, as empresas estarão sob vigilância constante e, obviamente, preferirão censurar uma grande quantidade de conteúdo para evitar penalizações.
A expressão “efeitos reais ou previsíveis” que as plataformas devem identificar e avaliar é um prato cheio para a subjetividade, quase um exercício de futurologia. Se, no futuro, uma denúncia ligar um crime a uma postagem antiga, as empresas poderão ser responsabilizadas. Isso lembra os PreCogs do filme Minority Report – A Nova Lei, em que crimes eram prevenidos antes mesmo de acontecerem.
No filme de 2002, assassinatos não ocorriam mais em Washington DC de 2054, graças à divisão pré-crime da polícia, que usava três paranormais para prever crimes. O líder da divisão descobre um erro nas previsões e é acusado de um futuro crime. A questão é: prender alguém antes que cometa um crime é justo?
A legislação digital propõe que plataformas sejam responsabilizadas por efeitos previsíveis de publicações. Identificar algo ilícito é fácil, mas a maioria dos casos não será clara, podendo envolver opiniões impopulares ou desagradáveis. Com um desdobramento grave posterior, qualquer coisa poderia ser denunciada como previsível. A proposta é impraticável, a menos que tenhamos legisladores com o dom dos PreCogs.
Outro tópico sensível é o dos neurodireitos, definidos na proposta como “proteções que visam preservar a privacidade mental, a identidade pessoal, o livre arbítrio, o acesso justo à ampliação ou melhoria cerebral, a integridade mental e a proteção contra vieses, das pessoas naturais, a partir da utilização de neurotecnologias”. Podemos estar diante da introdução do transumanismo no Código Civil. À medida que a tecnologia se desenvolve e pode ser usada junto ao ser humano, as possibilidades de uso se multiplicam. Em um dos artigos relacionados, é previsto o direito à continuidade da identidade pessoal e da vida mental. Esse é um assunto complexo que envolve muitas nuances e dilemas éticos, não podendo ser tratado de forma rápida e sem o debate necessário. O ideal seria uma lei específica para tal fim.
O tema dos direitos digitais não deve ser incluído no Código, devido à sua complexidade e às possíveis consequências para a liberdade de expressão, circulação de ideias e dignidade humana
Indo além no texto proposto, parecem incertas as consequências de as plataformas terem de avaliar efeitos reais ou previsíveis que possam impactar processos eleitorais e discursos cívicos. O uso político da legislação seria inevitável, podendo causar desvantagens para alguns políticos ou partidos, dependendo da interpretação dos efeitos – reais ou previsíveis. Nas últimas eleições, vimos casos em que veiculações de informações foram proibidas como fake news, mas depois se provaram verdadeiras.
A Comissão de Análise de Proposta de Revisão do Código Civil do IBDR reforça que o tema dos direitos digitais não deve ser incluído no Código, devido à sua complexidade e às possíveis consequências para a liberdade de expressão, circulação de ideias e dignidade humana. Assuntos como identidade digital, patrimônio digital, regulação notarial eletrônica e direito ao esquecimento devem ser tratados em legislação específica, com a participação de especialistas e da sociedade.
O IBDR segue empenhado em seu trabalho crítico, conduzido pela comissão especialmente formada para essa análise. O destaque comentano aqui foi oferecido por Ezequiel Barbosa, do Grupo 1, liderado por Zenóbio Fonseca, com revisão do Diretor Técnico do IBDR, Warton Hertz de Oliveira.
(Esse texto foi produzido com colaboração de Warton Hertz de Oliveira, advogado, bacharel e mestre em Teologia.)
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