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Tom Jobim era um profeta. A sua sentença de que o “Brasil não era para amadores” nunca foi tão atual. A novidade agora é a legalização da eutanásia e o total desprestígio à medicina. Caros leitores, vocês não leram errado: o anteprojeto do Código Civil que está rolando no Senado, entre linhas e entrelinhas, está legalizando a eutanásia! Em mais uma checagem de fatos da Comissão de Análise e Discussão do Anteprojeto do Código Civil do IBDR, confirmamos a presença da eutanásia no texto.
Vamos ao artigo 15 do anteprojeto do Código Civil: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Até aí, nada de novo sob o sol: autonomia do paciente, respeito às escolhas individuais, tudo como manda o figurino. Mas o enredo ganha contornos de novela quando escorregamos para o parágrafo primeiro: “É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade”. Aí a história muda de figura.
Esse parágrafo primeiro é um campo minado. Em uma leitura rápida, parece defender a autonomia da vontade, permitindo que alguém decida sobre seu fim de vida antecipadamente caso não possa se expressar no momento crítico. Contudo, abre um precedente que nada mais é do que eutanásia disfarçada. Afinal, escolher não receber tratamento em uma situação de vida ou morte é uma decisão gravíssima, e o texto parece tratar isso com uma leveza que assusta. Sob o disfarce de respeitar a vontade do paciente, o texto facilita a eutanásia passiva, em que o não fazer algo (como manter a alimentação ou a hidratação) acelera o fim da vida de alguém; e facilita a própria eutanásia ativa, em que o paciente poderá deixar por escrito que não se submete a nenhum tipo de cirurgia, mesmo aquela que possa salvar sua vida.
É aqui que a ética e a moral entram em campo com força total. Como sociedade, temos de perguntar: até que ponto isso é cuidado e respeito pela vontade do indivíduo, e onde começa o abandono pelo direito à vida, que é o vetor de todos os direitos fundamentais? E mais: ao permitir que decisões tão drásticas sejam tomadas previamente, corremos o risco de deixar de lado avanços médicos futuros que poderiam mudar completamente o prognóstico de uma pessoa.
Na prática, isso significa que a medicina, uma ciência dedicada a salvar vidas e melhorar a qualidade de vida, pode ser colocada em segundo plano, substituída por um documento talvez redigido em um contexto completamente diferente do que o paciente enfrenta no momento crítico. Isso é especialmente problemático porque a medicina está sempre avançando. O que hoje é uma sentença de morte pode ser tratável amanhã.
Além disso, há a questão da pressão social ou familiar. Quem garante que essas diretivas não foram feitas sob coação ou influência de terceiros? Em uma sociedade que ainda luta com a desigualdade no acesso à saúde, como garantir que a decisão de “não querer tratamento” não seja, na verdade, um reflexo de desesperança ou falta de recursos?
É só isso? Claro que não! O artigo 15 tem mais pegadinhas. Propõe-se incluir um parágrafo terceiro, pelo qual “a recusa válida a tratamento específico não exime o profissional de saúde da responsabilidade de continuar a prestar a melhor assistência possível ao paciente, nas condições em que ele se encontre ao exercer o direito de recusa”. À primeira vista, parece justo, mas o diabo mora nos detalhes.
Primeiro, precisamos entender o que significa uma “recusa válida”. Não é qualquer “não quero isso” ou “não quero aquilo” que pode ser aceito como válido. O paciente tem o direito de recusar um tratamento, sim, mas isso não pode ser um passe livre para jogar sua vida fora. Existem critérios rígidos aqui: a recusa é válida se, e somente se, não colocar em risco imediato a sua vida, não violar direitos de terceiros e, especialmente, se o paciente tiver capacidade cognitiva plena e autonomia civil para tomar essa decisão. Não é qualquer um que pode simplesmente dizer “não” e pronto. Mesmo em casos extremos, como a objeção de consciência (pensem nas testemunhas de Jeová recusando transfusões de sangue), a coisa só acontece se o indivíduo for adulto e capaz de expressar claramente essa vontade.
O segundo ponto a ressaltar nesse trecho é uma verdadeira corda bamba para os profissionais de saúde. Mesmo quando o paciente faz sua recusa “válida”, o médico (ou enfermeiro) ainda tem o dever de prestar a melhor assistência possível dentro dos limites dessa recusa. É um equilíbrio delicado entre respeitar a vontade do paciente e não largar mão do compromisso ético de zelo e cuidado. É sério: as consequências de uma recusa podem ser graves, mas o profissional de saúde é instruído a se eximir dessas consequências, contanto que tenha feito tudo ao seu alcance dentro do aceitável.
Eis aí o caldo de cultura perfeito para uma sopa de confusão ética, moral e legal. Como garantir que essas decisões sejam feitas com todos os pingos nos is? Como assegurar que o paciente realmente entende as implicações de sua escolha? E os profissionais de saúde, como ficam na história, equilibrando o dever de cuidar com o respeito à autonomia do paciente, que pode custar sua vida?
Aí vai um toque de realidade: quando a vida de um paciente está pendurada por um fio, o médico precisa tomar as rédeas. É isso mesmo! Em casos de risco iminente de morte, não dá para ficar naquela de “vamos respeitar a vontade do paciente”; não é momento para hesitações, e sim de salvar a vida do paciente, com raras exceções, como a da objeção de consciência, que comentamos acima. E violação de direitos de terceiros, como fica? Dentre os “terceiros” encontramos o nascituro, que não pode manifestar sua vontade. Ele também precisa ser protegido.
Falando em expressar vontades, precisamos jogar na mesa a questão da capacidade de discernimento. Não é novidade que pacientes em estágios avançados de doenças podem estar num verdadeiro nevoeiro mental. Portanto, é essencial garantir que a recusa de tratamento venha de alguém que realmente está em condições de tomar essa decisão tão grave. Não é brincadeira; afinal, estamos lidando com decisões que têm peso de vida ou morte.
Por fim, o anteprojeto ainda tem um artigo 15-A:
“Art. 15-A. Plenamente informadas por médicos sobre os riscos atuais de morte e de agravamento de seu estado de saúde, as pessoas capazes para o exercício de atos existenciais da vida civil podem manifestar recusa terapêutica para não serem constrangidas a se submeter à internação hospitalar, a exame, a tratamento médico, ou à intervenção cirúrgica.
Parágrafo único. Nos termos do § 1.º do art. 10 deste Código, toda pessoa tem o direito de fazer constar do assento de seu nascimento a averbação das declarações mencionadas neste artigo.”
Em outras palavras, afirma o texto, coroando a morte: plenamente informadas pelos médicos sobre os riscos de bater as botas ou de seu estado de saúde piorar, as pessoas com capacidade plena para exercer atos da vida civil agora podem dizer não à internação hospitalar, exames, tratamentos médicos ou intervenções cirúrgicas. Viram? É a coroação do direito à morte e à recusa terapêutica chegando com força total.
Se por um lado essa autonomia toda soa como música para os ouvidos de quem preza pela liberdade individual, não podemos esquecer que a vida é um metaprincípio, sendo vetor da liberdade. Não há liberdade sem vida. Imaginem só a quantidade de decisões precipitadas que podem ser tomadas por pessoas em momentos de desespero ou sem entender completamente o peso de suas escolhas.
O parágrafo único deste artigo, ainda por cima, é de cair o queixo: todos têm o direito de fazer constar no registro de nascimento as declarações de recusa terapêutica. É como se fosse um testamento vivo, gravado na pedra. E a objeção de consciência? Esta, sim, é um direito fundamental que se coaduna com a dignidade da pessoa humana e com a vida, mas foi esquecida no texto. Ao nosso ver, seria o único cenário em que a recusa de tratamento realmente faz sentido, como no já citado caso das testemunhas de Jeová que recusam transfusões de sangue. É uma questão de respeitar crenças profundas, sem colocar a vida em risco de forma leviana, e que se aplica apenas àqueles que possuam capacidade plena e autonomia civil para se expressar nesse sentido e assim objetar.
O artigo 15-A complementa os absurdos do artigo 15 de um jeito que faz qualquer um coçar a cabeça. Estamos abrindo as portas para a eutanásia ativa e passiva no Brasil e, de quebra, dizendo um “dane-se” para a ética médica e a evolução científica de tratamentos médicos que no momento da expressão da vontade da pessoa não salvam, mas daqui há, quem sabe, 30 anos, quando o sinistro acontecer, pode salvar, mas então será tarde.
Precisamos de um debate amplo, consciente e, acima de tudo, muito bem informado sobre isso. Não podemos deixar essas decisões na mão do acaso ou do calor do momento. Então, que tal trazermos um pouco mais de luz para essa discussão? Porque, no fim das contas, estamos falando de vidas humanas, e isso exige o máximo de seriedade e responsabilidade. Vamos nessa, com olhos bem abertos e mente clara, para garantir que cada passo seja dado com a devida consideração, porque, no Brasil, nunca é simples.
Por fim, o IBDR segue empenhado em seu trabalho crítico, conduzido pela comissão especialmente formada para essa análise. O destaque comentando aqui foi oferecido por Gabriela Neckel, do Grupo 1, liderado por Zenóbio Fonseca, com revisão do diretor técnico do IBDR, Warton Hertz de Oliveira. A jurista Gabriela Neckel sugeriu as seguintes alterações ao texto proposto:
“Artigo 15 (...) § 1.º É assegurada à pessoa natural a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, indicando o tratamento que deseje ou não realizar, em momento futuro de incapacidade, desde que não coloque em risco sua vida e, no momento futuro, o tratamento recusado não tenha sido aprimorado, de acordo com o parecer do médico responsável.
(...) § 3.º A recusa válida a tratamento específico constitui direito do paciente, desde que não viole direito de terceiros, não resulte ou esteja em risco de morte e possua capacidade cognitiva e capacidade civil plena para expressar a recusa;
§ 4.º A recusa válida a tratamento específico não exime o profissional de saúde a prestar a melhor assistência ao paciente até o limite do direito de recusa, eximindo-se, todavia, das consequências que advierem em razão da recusa do tratamento.
Artigo 15-A – Plenamente informadas por médicos sobre os riscos e as consequências previsíveis da recusa terapêutica, salvo em caso de risco de morte, as pessoas capazes de atos existenciais da vida civil podem manifestar recusa terapêutica para não serem constrangidas a submeterem-se à internação hospitalar, a exame, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica.
§ 1.º No que se refere ao direito de inviolabilidade de consciência de crença, previsto no artigo 5.º, inciso VI, da CRFB/88, é direito da pessoa negar o tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, desde que seja observada a sua capacidade civil plena, manifestação de vontade livre, consciente e informada e que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante.
§ 2.º É vedada a realização de qualquer procedimento que tenha por objetivo encerrar a vida de forma antecipada.”
Na próxima semana, traremos mais revelações sobre os absurdos deste anteprojeto.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos