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Sempre que há grandes acontecimentos, tendemos a dizer que as coisas nunca mais serão as mesmas. O que é uma grande verdade, pois estamos sempre em movimento. Afinal, quem de nós estará por aqui dentro de 50 anos?
A pandemia foi um desses grandes “pontos de virada”. Incluiu as pessoas (há quem diga forçosamente) na dimensão digital da vida. Para o bem ou para o mal, atingimos outro patamar na maneira de convívio humano. Temos literalmente uma vida on-life: um hibridismo entre atividades presenciais e virtuais.
Neste contexto também se inauguram conflitos crescentes na “arena pública digital”. Afinal, onde há gente normalmente há encrenca. E ali, no espaço cibernético, levamos as mesmas marcas que carregamos na vida analógica. Porém com um alcance maior, e poder (relativo) de influência, contido não pela opinião dos outros, mas pelos algoritmos. Nossa vida é editada não apenas pelos atores de novela e apresentadores de jornais, mas por sofisticados programas computacionais e pela própria inteligência artificial, que analisa e “aprende” com nossos hábitos e comportamentos frente ao computador.
Em um curto espaço de dois anos, todo o sistema jurídico baseado em liberdades fundamentais parece ter sido abalado de maneira estrutural
Vimos ainda as arbitrariedades cometidas por gestores de toda ordem. Em um curto espaço de dois anos, todo o sistema jurídico baseado em liberdades fundamentais parece ter sido abalado de maneira estrutural. Rachaduras em lugares estratégicos, parece até que calculadas, e com desdobramentos que estamos vendo neste momento tão surreal em meio à maior disputa eleitoral da história brasileira.
Como já dissemos algumas vezes nesta coluna, a liberdade religiosa é, historicamente, reconhecida como a primeira das liberdades. Consagra a dimensão espiritual – o impulso natural pela adoração e conexão com algo que transcenda esta nossa existência biológica tão frágil e rápida. Também estrutura e ordena uma escala de valores comuns que determinará até onde os outros podem interferir na minha vida privada, e qual o conjunto de obrigações pelo bem comum que sou obrigado a contribuir. Quando esta liberdade é colocada em xeque, o sistema todo sofre. E quando ela é violada, o abalo põe realmente a perigo todo o edifício chamado “democracia”.
Pois foi justamente isto que aconteceu em 2021, quando o STF julgou (na ADPF 811) que as igrejas deveriam permanecer fechadas no meio da pandemia. Nós avisamos, gritamos dos outeiros, fizemos a nossa parte, inclusive participando da sessão de julgamento. Foi uma “lavada” de 9 a 2, com as honrosas exceções dos ministros Nunes Marques e Dias Toffoli à ocasião. Porém atravessou-se o Rubicão. Foi um estopim para se acelerar a degradação das liberdades fundamentais, gerando as distorções que agora testemunhamos.
Assim como jamais sairíamos ilesos da pandemia, tampouco sairemos ilesos deste processo eleitoral de 2022. Este dia 30 marcará o fim da batalha mais desequilibrada – de maneira descarada – e do maior aparelhamento do Estado para o favorecimento de um projeto de poder, como jamais visto em minha geração, ao menos. E, obviamente, se a “liberdade-fim”, que é a religiosa, poderia ser torcida pelos “supremos”, a “liberdade-meio”, que é a de expressão, não poderia também sair ilesa.
Desde o início do processo até agora, o que se viu nas cortes eleitoral e suprema foi o absoluto vilipêndio aos axiomas constitucionais que juraram defender. Em nome do “combate à desinformação”, chegaram ao cúmulo de obrigar veículos a mentir a respeito da (des)condenação do candidato para o qual pendeu fortemente a balança de Themis; para quem ousou discordar, a espada não só foi alerta, mas fez vários cortes e decepou algumas cabeças, no bom estilo francês. Afinal, no dizer do atual “supremo dos supremos”, “basta prender um ou dois que eles param”.
As marcas deste processo serão difíceis de se apagar do sistema, pois elas passarão a ter o nome de “precedentes”
Não, senhores, não sairemos ilesos deste processo. As marcas serão difíceis de se apagar do sistema, pois elas passarão a ter o nome de “precedentes”. E é justamente este tipo de abuso que marca a derrocada do “rule of law”, do império da lei, pilar essencial de uma democracia. Tristemente, mas, para confirmar a teoria, tudo começa mesmo (e parece que termina também) na liberdade religiosa.
Que o resultado das urnas nos permita a oportunidade de continuarmos a buscar o aprimoramento das instituições – não apenas do Estado, posto que corolário das demais –, quais sejam, a família, a propriedade privada, a Igreja, e tudo o que possa servir de contenção à sanha de controle de alguns daquilo que somente pertence a Deus: nossos corpos, nossa mente e nossa alma.
Deus salve o Brasil!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos