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Está muito perigoso viver no Brasil ou “viver (no Brasil) é coisa perigosa”, como diria nosso amigo Guilherme Schelb[1]. E não é apenas por causa da violência sistêmica com que nos acostumamos. Expressar ideias ou dizer algumas palavras sobre homossexualidade virou um tabu mais que moral: estamos criando o primeiro tabu judicial da história.
No último dia 14/07, após denúncia do presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PB, foi instaurado um inquérito criminal na Delegacia Especializada contra Crimes Homofóbicos e Intolerância Religiosa da Polícia Civil da Paraíba, contra a professora de biologia Lourdes Rumanelly, a partir de uma live onde discutia temas do diálogo entre a ciência e preceitos bíblicos.
Sabe que a própria palavra “tabu” ajuda mesmo nesta hora. Segundo o Wikipedia, esta palavra, que vem do tonganês e maori, referem-se à proibição de terminado ato, “com base na crença de que tal ato invadiria o sagrado, implicando em perigo ou maldição para os indivíduos comuns”[2]. O fato é que todos nós já sabemos, na verdade “de cor e salteado”, que as ideologias já levaram milhões à morte e ainda produzem e invocam o que há de pior no ser humano. Porém é impressionante os tons totalitários que determinados assuntos acabam assumindo, e, pior, usando a máquina do Estado para produzir determinados choques assustadores naqueles que ousam discordar.
Inclusive este tema – a patrulha ideológica, que, no caso ora a comentar é aquela identificada com a militância pró super direitos a brasileiros e brasileiras que se orientam sexualmente com fluidez de gênero ou este diverso do sexo biológico, lembra-nos um pouco (de novo, gente, é o tema que nos lembra, não as pessoas, tá?) o personagem Lord Voldemort, da série Harry Potter: era tão perigoso o só mencionar da personagem que era conhecido como “aquele-que-não-deve-ser-nomeado”.
De novo. O universo é complexo. As pessoas são livres, justamente, para pensarem e crerem no que desejam[3] (e nisso a Constituição diz que é um direito inviolável), e limitadas para expressarem. De todos os lados. Mas, e a limitação, como fica? O ambiente acadêmico nos levaria para uma digressão sobre “ponderação de direitos” no neoconstitucionalismo versus a “dignidade da pessoa humana” como sendo o elemento irradiador dos direitos naturais que a ela devem sua força e propósito, na teoria clássica. Mas aqui não é espaço para tecnicidades jurídicas. Aqui é vida real.
Mas afinal, sobre o quê exatamente estamos a falar?
Primeiro vamos olhar o caso das expressões que causaram indignação nos membros da comissão da OAB que levaram à denúncia à polícia. E cá cabe um adendo importante: considerando a grande repercussão que o vídeo teve em todo o Brasil, sendo escusado por defensores da postura da professora por motivo de se identificarem com o posicionamento por ela defendido, e muito criticado por militantes pelos direitos das pessoas orientadas pró-diversidade, o fato é que quase todos (ou quase todos) vimos recortes da transmissão.
No recorte que nós tivemos acesso[4], um vídeo de 2 minutos e 24 segundos, a professora parece estar citando um texto, ou pelo menos lendo e comentando algo. A ouvir a frase – sem as interjeições da professora – é (a partir de 0’22”): “(...) sejam vistas como desvio, crime, aberração, doença, perversão, imoralidade e pecado”, fica claro que se trata de um comentário a respeito de Michael Warner, que cunhou ou termo “heteronormatividade” no início da década de 90, em seu “Fear of a Queer Planet”. O que parece é que ela está lendo as próprias palavras de Warner, que, ao definir a heteronormatividade como um sistema opressor das superestruturas de uma sociedade enraizada em valores patriarcais levavam, por comportamento, imagética e instrumentos repressivos a colocar a homossexualidade em um gueto de ilegalidade, e, junto, colocar uma pecha de tudo o que há de “ruim” ligado a ela.
Porém, ao fazer esta aparente leitura do texto de Warner, a professora Rumanelly destaca alguns dos substantivos usados. Os destaques se dão nos termos “aberração”, “perversão” e “pecado”. Inclusive ela destaca que a visão como “crime”, uma das acusações do autor contra quem é parte daquele então establishment “heteronormativo”, é forçosa demais, ela (professora) não consegue enxergar crime. Não diz nada também sobre os termos “doença”, ou “imoralidade”.
Ou seja, sua “concordância” com as acusações de Warner que a taxam de defensora da heteronormatividade fica adstrita à seara exclusivamente religiosa, pois os destaques do vídeo tido como “homofóbico” foram justamente aos termos que ela identifica como sendo assim reconhecidos pela Bíblia. Depois ela cita os textos das Escrituras que suportam seu argumento.
Como nossa função neste espaço não é fazer teologia, mas trazer argumentos jurídicos que encostam na esfera da consciência, crença e expressão religiosas e seu diálogo (ou conflito) com a laicidade colaborativa do Estado brasileiro, o que interessa para nós neste recorte é o seguinte: primeiro, por mais que falem, ainda não existe o crime de homofobia no Brasil. A decisão da ADO nº 26, julgada no ano passado pelo STF e que reconhece a equivalência da “homofobia” ao crime de racismo, enquanto não houver tipificação por lei, ainda não está valendo!
Isto mesmo, caro leitor. Ocorre que aquele julgamento ainda não transitou em julgado, ou seja, não houve a publicação formal da decisão, que ainda enseja recurso por parte dos “vencidos” no processo, que conta com diversas “partes interessadas”. Apenas quando não couber mais recursos e a decisão se tornar definitiva é que haverá, em tese, o tal crime. E, reiteramos, a decisão nem ao menos ainda foi publicada, e a publicação é a ficção jurídica necessária para iniciar o prazo de contagem de recurso, para, após este prazo, transcorrendo in albis, ou seja, sem a interposição de nenhum recurso, transita em julgado e então emana seus raios jurídicos de validade e eficácia.
A segunda é que, mesmo quando houver a tipificação criminal, por força da mesma decisão (pelo que está valendo dos votos dos ministros até agora), a objeção de consciência por motivo religioso está salvaguardada. Ou seja, mesmo com situações de supercategorias de direitos como o que a militância desta parcela da população tem conquistado nas últimas décadas, ainda se respeitou o direito da “exceção da verdade” religiosa: o argumento de fé é definitivo, não aberto à dialética. E, é exatamente o que parece ter acontecido nos “comentários” da professora em sua live.
Quando surgiram no texto de Warner os termos “aberração”, “perversão” e “pecado”, ela concordou, dizendo que era o que a Bíblia ensinava. Tomando sua posição pessoal (ela define-se como teóloga) assumidamente cristã, seus comentários foram embasados em argumento de fé, não na dialética esperada pelo pensamento científico. O mesmo pode se confirmar justamente por notas emitidas pela professora categoricamente afirmando que não tinha por objetivo afrontar ou humilhar ou ferir sentimentos de quaisquer pessoas.
O que ocorre, se não o patrulhamento ideológico que chegou ao ponto de conseguir o impensável, como dissemos no início? Por conta da ADO 26, falar de “sexualidade” como um todo virou tabu judicial! Qualquer “lado” que jogar contra “o outro” estará sujeito às penas previstas no art. 20 da Lei nº 7.716/1989. O mais irônico é que, ao mesmo tempo que se pune o preconceito de identidade de gênero, pune-se o preconceito religioso. Por enquanto a delegacia de polícia sabe que não pode indiciar a professora por “homofobia”. O inquérito criminal, provavelmente, não vai dar em nada, como já não deu no caso do Padre Rodrigo Alves de Oliveira, que, teve inquérito civil aberto contra si, pelo mesmo suposto crime de homofobia e, na sequência foi arquivado[5]. O que vem pela frente depois que esta decisão começar a realmente surtir efeito no Brasil? Só esperando pra saber.
Lembramos da “profecia” do sábio Arnaldo Jabor, já feita há alguns anos (de novo...ironia é um gênero literário, não confundam com outra coisa):
“Antigamente o homossexualismo era proibido no Brasil. Depois passou a ser tolerado. Hoje é aceito como coisa normal. Eu vou-me embora antes que passe a ser obrigatório”.
Leia a promoção de arquivamento do caso:
[1] SCHELB, Guilherme Zanina. Viver é coisa perigosa: comportamentos suspeitos, ambientes perigosos, e relacionamentos de risco. Brasília: Thesaurus Editora, 2008.
[2] WIKIPEDIA, pesquisa pelo termo “tabu”. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Tabu, acesso em 20/07/2020.
[3] Citando Otho Moreno de Medeiros Alves, demonstramos em nossa recente obra - Direito Religioso, orientações práticas em tempos de covid-19, 2ª. Ed, Vida nova, 2020, p. 27 - que: “A liberdade de culto é pública e se caracteriza com uma “liberdade de ação”, enquanto a liberdade de crença é interna, particular de cada um e por isto não pode ser limitada. Dito de outra forma, liberdade religiosa é “ilimitada apenas no sentido da crença pessoal, interna, assim como a liberdade de pensamento. Aliás, a consciência religiosa, inclusive em sua manifestação pública, não pode ser limitada. No entanto, a conduta do indivíduo pode estar sujeita à incidência de normas penalizadoras, especialmente de normas de Direito Penal, mesmo que decorrentes de profundas convicções religiosas”“.
[4] Link acessado aqui: https://www.youtube.com/watch?v=J9uysIHSg78&feature=emb_title, acesso em 20/07/2020.
[5] Inquérito civil n. 19012.0/7, aberto por denúncia do Movimento LGBT Leões do Norte, aberto pela promotoria de justiça e arquivado posteriormente.