Os que estudam a liberdade religiosa têm plena consciência de que o Brasil possui uma realidade desejada por muitos países; realidade esta, destaque-se, reconhecida, aplaudida nos fóruns internacionais e considerada como exemplo a ser imitado. Aliás, desnecessário ser um estudioso para saber que, entre nós, grassam o respeito, a tolerância e a boa convivência entre os mais diferentes credos (embora existam, em algumas pesquisas, dados que causem alarma recentemente, os quais, é bom que se sublinhe, precisam ser mais bem analisados, pois necessitam de uma coleta mais aprofundada, por um período mais longo – para analisar tal questão, necessário seria uma digressão que deixaremos para um outro momento).
O fato é que, entretanto, as violações são pontuais e, sim, temos reconhecimento, ao redor do mundo, no sentido de que vivemos numa pluralidade de crenças e cultos, em uma democracia pacífica no que concerne aos eventos ligados à fé e crença religiosa. Ou seja, utilizando-se de uma metáfora, a sociedade brasileira erigiu um monumento cuja estética é apreciada pela sociedade mundial, tal quais Estátua da Liberdade, a Torre de Eiffel e o próprio Cristo Redentor.
Sempre que se observa o fenômeno religioso (utilizando essa expressão num sentido comum e que já se tornou frequente no dia-a-dia, mas que possui limitação conceitual), as violações podem ocorrer vindas de dois setores geralmente: o estatal e o social – embora no ambiente intrafamiliar (privado) possa vir a existir também.
Por exemplo: o México tem enfrentado sérias dificuldades quando se trata da hostilidade social; nos lugares em que há uma forma de “catolicismo” popular (isto é, uma deturpação do Catolicismo Romano), que se funde com determinados rituais tradicionais indígenas, quando alguém abandona a fé e se converte a outro credo, costuma ser perseguido pela população local, vir a ter a casa depredada, ou ter o acesso a certos bens limitado et cetera.
Às vezes, também é comum ocorrer que um assédio (social) se sobreponha a outro (estatal). Em síntese: a autoridade governamental, diante de uma perseguição ou agressão religiosas, queda-se inerte na defesa de uma crença minoritária, ao não adotar medidas de persecução judiciária e pode, até mesmo, apoiar tais hostilidades sociais, tácita ou explicitamente.
A Covid-19 e o “vírus” do oportunismo
No que pese o que foi supramencionado no primeiro parágrafo (a harmonia entre os credos na realidade brasileira), a pandemia do Sars-CoV-2, conhecida popularmente como coronavírus, permitiu ser desvelado o que estava, digamos assim, debaixo do tapete, mas que já era percebida por muitos: uma antipatia e uma má vontade do establishment – incluindo-se aqui parte majoritária do quarto poder –, quando não, uma verdadeira oposição aos que creem, por uma parcela das autoridades governamentais e dos conselheiros destas.
São de conhecimento notório, na atual pandemia, os ocorridos, dentre os quais citamos: proibição de cultos presenciais no Ceará; interrupção de missa on line em Poços de Caldas; lavratura de um boletim de ocorrência, vejam o absurdo!, contra uma família que se reunia em oração em casa, no estado de Santa Catarina; e, por último, para coroar as sandices, a permissão que ocorreu, em Sobral, no estado do Ceará, na semana passada, para que os motéis da cidade retornassem a funcionar e a proibição simultânea da reabertura das igrejas.
Convém destacar, ainda, mais um ponto: as mais variadas confissões religiosas se portaram de maneira exemplar, de forma tal que, inclusive, anteciparam-se muitas vezes às medidas estatais restritivas, no cuidado da vida e da saúde dos fiéis. Sejamos honestos: este comportamento foi adotado pela maioria esmagadora das igrejas e dos cultos religiosos, os quais serviram de exemplo para toda a comunidade, no sentido de como lidar com um evento novo, imprevisto e que oferecia ameaças (já concretizadas) de grandes danos sociais.
Ou seja: as religiões em geral agiram com prudência, sempre à espera das decisões e medidas das autoridades, sendo que os credos possuíam a legítima expectativa de que tais definições fossem tomadas dentro do arcabouço constitucional e legal do Brasil, o que, em grande parte, infelizmente não ocorreu.
Com efeito, o ordenamento jurídico nacional possui as balizas para a defesa dos direitos fundamentais, entre eles o da liberdade religiosa, que está esculpido no art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal. Outro dispositivo da constituição brasileira é o art. 19, I, que estipula o modelo de laicidade vigente entre nós, a proibir, por exemplo, o estabelecimento de cultos e igrejas, por parte do estado, bem como veda o embaraço do funcionamento deles, cultos religiosos e igrejas, por parte dos agentes estatais. Este último termo a que nos referimos, utilizado na redação constitucional, deve ser destacado: “é vedado... embaraçar-lhes o funcionamento”.
É comum ouvir-se que o estado brasileiro é laico, e é verdade, como se pode ler no art. 19, inciso I, já mencionado. Mas isso não é tudo. Primeiramente, não quer dizer que o estado brasileiro é laicista, como se seguíssemos o modelo francês, no qual o fenômeno religioso recebe tratamento maneira hostil. Não seguimos! Atente-se que, no final desse mesmo dispositivo, é prevista a colaboração do estado com as igrejas e cultos religiosos, sempre na busca do interesse público e do bem comum. Somente esta referência já faria ruir as interpretações enviesadas, que soem ocorrer, numa simulação de uma prestidigitação de qual foi o intento do poder constituinte originário; hermenêuticas estas que se dão, única e exclusivamente, por desconhecimento, ou, infelizmente, por má-fé; como se o relacionamento do estado com os cultos religiosos e com as igrejas, entre nós, fosse interditado.
O terreno constitucional
Há algo a ser acrescentado, e que não pode ser esquecido, quando analisamos a topografia constitucional da bem-afamada “Constituição Cidadã”, o que pretendemos fazer a seguir, muito perfunctoriamente, na análise deste terreno: depois de estipular os princípios fundamentais e os objetivos da República Federativa do Brasil, no Título I, dos artigos 1º ao 4º, no seguinte título, Título II, estão previstos os direitos e garantias fundamentais, coligidos entre os artigos 5º e 17; somente então é estabelecida a organização do estado, no Título III, local em que está albergado o princípio da laicidade (art. 19, Inc. I, da CF).
Ora, o que isso significa? Numa constituição denominada “Cidadã”, tal estruturação quer dizer que a finalidade do estado brasileiro é não só reconhecer (reconhecer, e não criar direitos, frise-se, pois direitos humanos são inatos) como defender as liberdades fundamentais. Logo, o que tem precedência em tal arcabouço constitucional é, justamente, a proteção dos direitos da pessoa humana. Desta feita, a organização do estado é instrumental, é meio para um fim, pois visa a limitar o poder estatal e seus agentes.
Em outras palavras: como a liberdade religiosa vem primeiro, e é um dos fins da república, enquanto a laicidade situa-se no Título III da Constituição, estando esta última a serviço da liberdade religiosa; é ela, a laicidade, portanto, um meio de defender o cidadão de indevidas interferências do poder estatal e dos agentes deste.
O foco, portanto, onde deve ser concentrada a luz desse palco, é a liberdade religiosa, e não a laicidade, como “malandramente” se costuma fazer. A preocupação da Constituição Cidadã, oras, é, num dizer liliputiano, com o cidadão e com a cidadã, bem como com o estrangeiro, aquele ou aquela que crê, tem fé e quer ter o pleno desenvolvimento da personalidade dele(a) exercido de forma livre, sem que os agentes estatais estejam, a cada passo, cerceando, bisbilhotando, interferindo, embaraçando. Aliás, ela protege até o indivíduo que não crê, como os ateus e agnósticos, visto que eles não podem sofrer qualquer tipo de discriminação, como ocorria no passado, quando, para se assumir um cargo público, tinha como pré-requisito professar o Catolicismo Romano.
A liberdade religiosa é, assim, uma musa do constituinte brasileiro, como aquela da música de Erasmo Carlos: uma super star, que sempre veremos brilhar no palco constitucional; enquanto a laicidade é, meramente, o holder desse show.
O Direito da Normalidade versus o Direito da Crise
Ditas tais coisas, pontuamos, no relevo constitucional, o chamado Direito da Normalidade. Este é o direito da nossa rotina: naquele dia em que levantamos, tomamos nosso café, saímos para trabalhar, nos divertimos et cetera. Este serve, portanto, para o nosso dia-a-dia, mas não é com ele que poderemos eventualmente lidar quando surge o inesperado, a emergência, a exceção. É com o direito da exceção que devemos trabalhar (sem que este termo seja considerado em um sentido pejorativo, embora saibamos que entre nós tenha ele uma carga semântica negativa); ou que deveríamos ter trabalhado, em tempos de pandemia. O direito da exceção também é conhecido como Direito da Crise.
Tal Direito da Crise está previsto no Título V, epigrafado como sendo o da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, no artigo 136 e seguintes da Constituição Federal. No Capítulo I deste título, o constituinte originário previu o Estado de Defesa e o Estado de Sítio. Nestes dois modelos jurídicos, ao fincar o Direito da Crise no solo constitucional, os nossos representantes estipularam quando, como e, até pode se aventar, em que medida os Direitos Fundamentais, do Título II, dentre eles o da liberdade religiosa, poderiam ser restringidos ou suspensos.
No Estado de Defesa, formulado no art. 136, há – num dos seus parágrafos, o parágrafo primeiro, inciso também primeiro – a previsão de restrição, nos limites da lei, de alguns direitos: o direito de reunião, o sigilo de correspondência e o sigilo de comunicação. Já no que diz respeito ao Estado de Sítio, o art. 139, em seus vários incisos, prevê a busca e apreensão em domicílio, a obrigação de permanência em determinado local, a suspensão da liberdade de reunião et cetera.
Em síntese, em nenhum desses dispositivos constitucionais é mencionada a liberdade religiosa, ou mais especificamente um dos vetores dela, que foi duramente afetado durante a pandemia, a liberdade de culto. Desta feita, fica uma indagação: pode a liberdade religiosa ser suspensa ou restringida, quando da decretação do Estado de Defesa e do Estado de Sítio, no ordenamento jurídico brasileiro?!
Há um princípio hermenêutico cujo conteúdo proclama que normas excepcionais devem ser interpretadas de forma restritiva e, desta forma, não sendo prevista a liberdade religiosa nem a liberdade de culto nos dispositivos do chamado Direito da Crise (Estado de Defesa e Estado de Sítio), não poderiam tais liberdades ser contempladas para o cerceamento delas no estado de emergência, sob pena de estarmos diante de um estado de exceção inconstitucional. Logo, diante de tal interpretação, quando da decretação de um Estado de Sítio ou Estado de Defesa, a liberdade religiosa e a liberdade de culto não poderiam ser suspensas ou restringidas.
O que o direito d´além mar tem a nos ensinar
Pode ser que algum jurista de escol se levante e diga ser absurda tal interpretação, como se estivéssemos afirmando que a liberdade religiosa é uma liberdade absoluta. Façamos, então, um estudo comparado com a constituição portuguesa (que nos serviu de modelo e ficou conhecida, no dizer do grande constitucionalista português, o professor doutor Gomes Canotilho, como Constituição Dirigente) e vejamos o que estipula a Constituição de Portugal.
Pois bem, em seu artigo 19, parágrafo 6º, esculpe, de maneira lapidar: “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.”
Achando pouco, a Lei de Liberdade Religiosa de Portugal, do ano de 2001, escreveu com grafia mais forte e destacada, no art. 6, parágrafo 5º: “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar a liberdade de consciência e de religião.”
Quando nos comparamos com a nação irmã, portuguesa, há entre nós ainda uma lacuna: no ordenamento jurídico português, a lei que foi prevista para regulamentar o estado de exceção existe e está em pleno vigor (Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, epigrafada como Lei do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência), coisa que o legislador pátrio ainda não fez para regulamentar o estado de emergência, outro nomes para o estado de exceção, entre nós.
O art. 2 desta lei portuguesa repete conteúdo similar ao que consta na Lei de Liberdade Religiosa já mencionada: “ A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.”
Vê-se, portanto, que a dúvida levantada, se é possível uma interpretação que vede as restrições às liberdades religiosa e de culto, em tempos de crise, bem como a interpretação feita em cima do texto constitucional brasileiro do Direito da Crise (estados de exceção) não exorbitam numa proteção além do desejável e do necessário a tal liberdade, eventualmente.
A razão pela qual o estado português deliberou e reconheceu proteção tão fundamental à liberdade religiosa se dá pela devida obediência ao chamado núcleo duro dos direitos humanos, albergado no art. 4º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966, que impossibilita, sob qualquer pretexto, aos estados parte, a suspensão dos direitos à vida, por exemplo, ou a submissão de qualquer pessoa à escravidão, à tortura, interdita a prisão por dívidas et cetera.
Interrompemos, por ora, nossas reflexões; retornaremos em próxima edição para conclui-la.
*Jeova Barros de Almeida Júnior é diretor e conselheiro fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Pesquisador de liberdade religiosa. Editor adjunto da Dignitas - Revista Internacional do IBDR. Formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pelo Mackenzie com estudos na Universidade de Oxford e na Universidade de Coimbra.
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