![O Judiciário sabe onde fica o “quinto dos infernos”? inferno alexandre de moraes](https://media.gazetadopovo.com.br/2022/11/29190003/Sandro_Botticelli_-_La_Carte_de_lEnfer-960x540.jpg)
Em tempos de “perseguição educada” – ou, como também dizemos, a “nova guilhotina” – cada vez crescente, lançamos luz (enquanto dá) sobre a representação do deputado distrital Fábio Félix (PSol-DF) contra a fala do pastor norte-americano pentecostal David Eldridge. O pastor, em sua pregação proferida em um culto, durante o carnaval, teria dito que “gays têm reserva no inferno”. Para o deputado, tal fala configura discurso de ódio, e o pastor deveria ser punido.
Em primeiro lugar: a afirmação é pesada, e quanto a isso não temos dúvidas. A nosso ver, foi infeliz. Pode, também, ser teologicamente questionável. Mas compete ao Poder Judiciário dizer onde fica o “quinto dos infernos” e quem vai ou não para lá?
Depois, é importante entendermos o conceito jurídico de discurso de ódio. Esta figura foi introduzida no Brasil como importante vetor exegético a partir do chamado “caso Ellwanger”, via STF, no RHC 134682 (HC 82424). Para o Supremo, temos discurso de ódio quando a fala é discriminatória. E, para que seja considerada discriminatória, o julgador deve percorrer três etapas: 1. A constatação fática de que os seres humanos são desiguais; 2. A afirmação de superioridade sobre os diferentes; e 3. A defesa da eliminação, escravização ou supressão dos direitos fundamentais do considerado desigual.
A Justiça pode dizer se o inferno é bom ou ruim, se é frio ou se é quente, se é lugar de pastores ou de gays? Óbvio que não!
Pode ser que a primeira etapa esteja contemplada no discurso, caso façamos o seguinte raciocínio lógico: “para o pastor Eldridge, o gay tem reserva no inferno; logo, quem não é gay não tem reserva no inferno”. Não assistimos a toda a pregação, mas, ao ler os comentários e a publicação do deputado, pareceu-nos que mais gente, além dos gays, tem a tal “reserva no inferno”.
Por outro lado, essa “desigualdade”, se é que podemos chamá-la assim, se daria no plano espiritual e depois da morte; afinal de contas, só pode ir para o inferno quem já morreu. Então, a pergunta óbvia é a seguinte: existe “desigualdade espiritual”? Se existe, como se faz para processar uma alma superior que foi para o céu e fica se vangloriando para cima da alma que está no inferno? Então, parece-nos que a desigualdade entre seres humanos – necessária para a primeira etapa no Caso Ellwanger – ocorre no plano material e enquanto estamos vivos (até porque, caso contrário, o Poder Judiciário teria de aceitar a existência do inferno e do plano espiritual).
Passamos à segunda etapa. O pastor norte-americano não se disse superior, mas afirmou quem vai ou não para o inferno. A afirmação aqui só pode ter uma conotação de superioridade se reconhecermos o inferno como fato, e um fato ruim (ainda no plano espiritual). Somos pessoas de fé, religiosos, e podemos ter tais convicções; mas o Estado pode? A Justiça pode? Será que a Justiça pode dizer se o inferno é bom ou ruim, se é frio ou se é quente, se é lugar de pastores ou de gays? Óbvio que não, pelo amor de Deus!
Uma coisa é ter uma ação positiva com a religião no sentido de criar condições para que as pessoas religiosas exerçam sua fé: é a laicidade colaborativa, o caso brasileiro. Outra coisa é o Poder Judiciário reconhecer a existência do inferno e que ele é muito ruim. Apenas com tal reconhecimento é que a Justiça poderia afirmar que a sentença “os gays têm reserva no inferno” é uma constatação de desigualdade entre seres humanos. Pois o ser humano que tem certeza de ir para o céu estaria cometendo um ato de superioridade ao sentenciar que os outros, incluindo gays, vão para o inferno. Reitero: a Justiça e o Estado precisariam necessariamente reconhecer a existência de céu e inferno e suas qualidades!
Por fim, a terceira etapa. O tal pastor falastrão defendeu a eliminação, escravização ou supressão dos direitos dos homossexuais? Não. Há quem diga que, no inferno, as almas condenadas não possuem direitos e são escravas do capeta. Pode ser que sim, pode ser que não. Depende do que você acredita. Todavia, no mundo do aqui e agora o pastor não falou nada sobre eliminação, escravização ou supressão dos direitos dos homossexuais; apenas – reiteramos – de céu e inferno.
Para aplicar as etapas do Caso Ellwanger e haver a caracterização como discurso de ódio, o deputado (bem como o Ministério Público e o Poder Judiciário) precisaria aceitar a versão de inferno do pastor David Eldridge. Do dia para a noite teríamos um Estado confessional pentecostal. O Tribunal de Justiça poderia se chamar Tribunal de Justiça Mundana e Espiritual ou Santo Tribunal Pentecostal, sei lá. Também precisaríamos de um Código Civil Espiritual Pentecostal com as definições de pecado, céu, inferno etc. Critérios de ingresso no céu, no inferno e por aí vai...
Voltemos ao STF: a ADO 26 (que ainda está em andamento) tem sido um marco importante para questões envolvendo homofobia. Se você quiser mais explicações sobre a decisão do julgado, sugerimos olhar este vídeo nosso aqui. A decisão segue a mesma linha do Caso Ellwanger e ainda excepciona claramente as pregações que estiverem de acordo com os livros sagrados. Esta fala do pastor norte-americano encontra ressonância com a doutrina pentecostal e as principais correntes teológicas em todo o mundo. Na exceção, deixa bem claro: “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio” – e o que é o tal discurso de ódio? O STF responde: palavras que “incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência”.
A única forma de impedir os religiosos de pregar e ensinar sobre suas crenças é interferindo em seus dogmas via decisão judicial ou lei, dizendo quais doutrinas podem e quais não podem vigorar nos dias de hoje. Para isso, teremos de dar adeus à laicidade e às liberdades
Geralmente o discurso dogmático sobre o pecado tem o condão de salvar os pecadores, para que alcancem a vida eterna no paraíso. É necessário sempre ler o discurso religioso com a chave espiritual e acreditando nas premissas espirituais e sobrenaturais. Se você desliga a chave espiritual, o discurso religioso se torna irrelevante. Pensem conosco: Para quem não acredita em céu e inferno, a fala “gays têm uma reserva no inferno” é irrelevante, uma besteira completa como o Coelho da Páscoa ou os zumbis de The Walking Dead. Mas, se alguém acredita, ela passa a ser relevante. A relevância, no entanto, é espiritual e depende da crença de cada um; como o Poder Judiciário poderia entrar na esfera do que as pessoas acreditam ou não? Somente sendo crédulo como o fiel é! E aí teríamos um Tribunal da Santa Inquisição e não um Tribunal de Justiça!
Não temos dúvidas de que o pastor americano poderia escolher melhor as palavras para ensinar e pregar sobre os seus dogmas; afinal de contas, prudência nunca é demais e, ao nosso ver, afirmações assim apenas afastam as pessoas do Evangelho. Mas dizer que se trata de discurso de ódio, passível de crime, é demais. É o que chamamos de “perseguição educada”: chegará o tempo que ninguém mais poderá falar de inferno, afinal de contas ele é quente, ruim e sabe-se mais o quê.
A única forma de impedir os religiosos de pregar e ensinar sobre suas crenças é interferindo em seus dogmas via decisão judicial ou lei, dizendo quais doutrinas podem e quais não podem vigorar nos dias de hoje. Para isso, teremos de dar adeus à laicidade estatal e às liberdades de pensamento, consciência, crença, de expressão e religiosa. Será o fim das liberdades, tudo porque algumas pessoas não acreditam no inferno e por isso não querem que ninguém fale sobre ele; ou, o que é pior, porque acreditam em sua visão “particular” de inferno, jogando fora a tradição milenar das igrejas cristãs, e querem impor a todos os seus fiéis tal visão particular, nascida de suas cabeças ou de movimentos identitários que não entendem nada de teologia, de céu, inferno e de coisas espirituais.
-
Novo embate entre Musk e Moraes expõe caso de censura sobre a esquerda
-
Biden da Silva ofende Bolsonaro, opositores e antecipa eleições de 2026; acompanhe o Sem Rodeios
-
Qual o impacto da descriminalização da maconha para os municípios
-
Qual seria o melhor adversário democrata para concorrer com Donald Trump? Participe da enquete
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS
Deixe sua opinião