Em tempos de “perseguição educada” – ou, como também dizemos, a “nova guilhotina” – cada vez crescente, lançamos luz (enquanto dá) sobre a representação do deputado distrital Fábio Félix (PSol-DF) contra a fala do pastor norte-americano pentecostal David Eldridge. O pastor, em sua pregação proferida em um culto, durante o carnaval, teria dito que “gays têm reserva no inferno”. Para o deputado, tal fala configura discurso de ódio, e o pastor deveria ser punido.
Em primeiro lugar: a afirmação é pesada, e quanto a isso não temos dúvidas. A nosso ver, foi infeliz. Pode, também, ser teologicamente questionável. Mas compete ao Poder Judiciário dizer onde fica o “quinto dos infernos” e quem vai ou não para lá?
Depois, é importante entendermos o conceito jurídico de discurso de ódio. Esta figura foi introduzida no Brasil como importante vetor exegético a partir do chamado “caso Ellwanger”, via STF, no RHC 134682 (HC 82424). Para o Supremo, temos discurso de ódio quando a fala é discriminatória. E, para que seja considerada discriminatória, o julgador deve percorrer três etapas: 1. A constatação fática de que os seres humanos são desiguais; 2. A afirmação de superioridade sobre os diferentes; e 3. A defesa da eliminação, escravização ou supressão dos direitos fundamentais do considerado desigual.
A Justiça pode dizer se o inferno é bom ou ruim, se é frio ou se é quente, se é lugar de pastores ou de gays? Óbvio que não!
Pode ser que a primeira etapa esteja contemplada no discurso, caso façamos o seguinte raciocínio lógico: “para o pastor Eldridge, o gay tem reserva no inferno; logo, quem não é gay não tem reserva no inferno”. Não assistimos a toda a pregação, mas, ao ler os comentários e a publicação do deputado, pareceu-nos que mais gente, além dos gays, tem a tal “reserva no inferno”.
Por outro lado, essa “desigualdade”, se é que podemos chamá-la assim, se daria no plano espiritual e depois da morte; afinal de contas, só pode ir para o inferno quem já morreu. Então, a pergunta óbvia é a seguinte: existe “desigualdade espiritual”? Se existe, como se faz para processar uma alma superior que foi para o céu e fica se vangloriando para cima da alma que está no inferno? Então, parece-nos que a desigualdade entre seres humanos – necessária para a primeira etapa no Caso Ellwanger – ocorre no plano material e enquanto estamos vivos (até porque, caso contrário, o Poder Judiciário teria de aceitar a existência do inferno e do plano espiritual).
Passamos à segunda etapa. O pastor norte-americano não se disse superior, mas afirmou quem vai ou não para o inferno. A afirmação aqui só pode ter uma conotação de superioridade se reconhecermos o inferno como fato, e um fato ruim (ainda no plano espiritual). Somos pessoas de fé, religiosos, e podemos ter tais convicções; mas o Estado pode? A Justiça pode? Será que a Justiça pode dizer se o inferno é bom ou ruim, se é frio ou se é quente, se é lugar de pastores ou de gays? Óbvio que não, pelo amor de Deus!
Uma coisa é ter uma ação positiva com a religião no sentido de criar condições para que as pessoas religiosas exerçam sua fé: é a laicidade colaborativa, o caso brasileiro. Outra coisa é o Poder Judiciário reconhecer a existência do inferno e que ele é muito ruim. Apenas com tal reconhecimento é que a Justiça poderia afirmar que a sentença “os gays têm reserva no inferno” é uma constatação de desigualdade entre seres humanos. Pois o ser humano que tem certeza de ir para o céu estaria cometendo um ato de superioridade ao sentenciar que os outros, incluindo gays, vão para o inferno. Reitero: a Justiça e o Estado precisariam necessariamente reconhecer a existência de céu e inferno e suas qualidades!
Por fim, a terceira etapa. O tal pastor falastrão defendeu a eliminação, escravização ou supressão dos direitos dos homossexuais? Não. Há quem diga que, no inferno, as almas condenadas não possuem direitos e são escravas do capeta. Pode ser que sim, pode ser que não. Depende do que você acredita. Todavia, no mundo do aqui e agora o pastor não falou nada sobre eliminação, escravização ou supressão dos direitos dos homossexuais; apenas – reiteramos – de céu e inferno.
Para aplicar as etapas do Caso Ellwanger e haver a caracterização como discurso de ódio, o deputado (bem como o Ministério Público e o Poder Judiciário) precisaria aceitar a versão de inferno do pastor David Eldridge. Do dia para a noite teríamos um Estado confessional pentecostal. O Tribunal de Justiça poderia se chamar Tribunal de Justiça Mundana e Espiritual ou Santo Tribunal Pentecostal, sei lá. Também precisaríamos de um Código Civil Espiritual Pentecostal com as definições de pecado, céu, inferno etc. Critérios de ingresso no céu, no inferno e por aí vai...
Voltemos ao STF: a ADO 26 (que ainda está em andamento) tem sido um marco importante para questões envolvendo homofobia. Se você quiser mais explicações sobre a decisão do julgado, sugerimos olhar este vídeo nosso aqui. A decisão segue a mesma linha do Caso Ellwanger e ainda excepciona claramente as pregações que estiverem de acordo com os livros sagrados. Esta fala do pastor norte-americano encontra ressonância com a doutrina pentecostal e as principais correntes teológicas em todo o mundo. Na exceção, deixa bem claro: “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio” – e o que é o tal discurso de ódio? O STF responde: palavras que “incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência”.
A única forma de impedir os religiosos de pregar e ensinar sobre suas crenças é interferindo em seus dogmas via decisão judicial ou lei, dizendo quais doutrinas podem e quais não podem vigorar nos dias de hoje. Para isso, teremos de dar adeus à laicidade e às liberdades
Geralmente o discurso dogmático sobre o pecado tem o condão de salvar os pecadores, para que alcancem a vida eterna no paraíso. É necessário sempre ler o discurso religioso com a chave espiritual e acreditando nas premissas espirituais e sobrenaturais. Se você desliga a chave espiritual, o discurso religioso se torna irrelevante. Pensem conosco: Para quem não acredita em céu e inferno, a fala “gays têm uma reserva no inferno” é irrelevante, uma besteira completa como o Coelho da Páscoa ou os zumbis de The Walking Dead. Mas, se alguém acredita, ela passa a ser relevante. A relevância, no entanto, é espiritual e depende da crença de cada um; como o Poder Judiciário poderia entrar na esfera do que as pessoas acreditam ou não? Somente sendo crédulo como o fiel é! E aí teríamos um Tribunal da Santa Inquisição e não um Tribunal de Justiça!
Não temos dúvidas de que o pastor americano poderia escolher melhor as palavras para ensinar e pregar sobre os seus dogmas; afinal de contas, prudência nunca é demais e, ao nosso ver, afirmações assim apenas afastam as pessoas do Evangelho. Mas dizer que se trata de discurso de ódio, passível de crime, é demais. É o que chamamos de “perseguição educada”: chegará o tempo que ninguém mais poderá falar de inferno, afinal de contas ele é quente, ruim e sabe-se mais o quê.
A única forma de impedir os religiosos de pregar e ensinar sobre suas crenças é interferindo em seus dogmas via decisão judicial ou lei, dizendo quais doutrinas podem e quais não podem vigorar nos dias de hoje. Para isso, teremos de dar adeus à laicidade estatal e às liberdades de pensamento, consciência, crença, de expressão e religiosa. Será o fim das liberdades, tudo porque algumas pessoas não acreditam no inferno e por isso não querem que ninguém fale sobre ele; ou, o que é pior, porque acreditam em sua visão “particular” de inferno, jogando fora a tradição milenar das igrejas cristãs, e querem impor a todos os seus fiéis tal visão particular, nascida de suas cabeças ou de movimentos identitários que não entendem nada de teologia, de céu, inferno e de coisas espirituais.
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