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Nosso retorno de férias não poderia ser mais auspicioso que na semana em que se comemora o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído pela Lei 11.635, de 27 de dezembro de 2007. O dia 21 de janeiro foi escolhido em homenagem a uma líder religiosa de matriz africana, a ialorixá Mãe Gilda, que sofreu diversas agressões verbais e físicas, além de invasões em seu terreiro, culminando em um infarto fulminante no dia 21 de janeiro de 2000.
A intolerância religiosa apenas aumenta no Brasil via perseguições a fiéis de matriz africana ou evangélicos, que, segundo dados estatísticos do Disque 100 do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, são as duas religiões mais perseguidas no Brasil.
Além das perseguições registradas no Disque 100 via denúncias, outras perseguições que não chegam às estatísticas se avolumam. A violência simbólica só faz aumentar. Ser católico ou evangélico e conservador ao mesmo tempo pode resultar em demissões, como o caso do jogador de vôlei Maurício Souza; intimação para uma visitinha ao promotor de Justiça, caso do pastor Jorge Linhares; ou, ainda, ir parar na delegacia de polícia conversar com o delegado, como aconteceu com o vereador canoense Airton Souza. Isso sem falar das ações indenizatórias contra a pastora Ana Paula Valadão pelo simples fato de que parte de uma fala sua, dita dentro da igreja em um culto no início de 2016, consistia em uma verdade teológica milenar (da esmagadora maioria das igrejas cristãs, católicas ou protestantes), inclusive prevista no Catecismo da maior igreja cristã e mais tradicional do mundo, a Igreja Católica Apostólica Romana (§ 2357 a 2359).
Se na academia todo o plexo de direitos emanados das liberdades de crença e religiosa é esquecido ou ensinado em uma única aula ao longo de cinco anos, qual o resultado a se esperar? Confusão conceitual, má aplicação do direito e, óbvio, restrições indevidas a essas liberdades
E por que tais fatos acontecem? Porque na verdade não sabemos muito bem no Brasil o que é liberdade religiosa. Infelizmente, a academia brasileira é pródiga em pesquisas sobre as liberdades de crença e religiosa. A começar pela própria distinção dessas liberdades. Os cursos de Direito Constitucional utilizados Brasil afora confundem essas duas liberdades, trazendo prejuízos graves lá na ponta (na efetivação e aplicação). Isso porque são os alunos de Direito de hoje que serão os juízes, promotores, advogados, escritores e professores universitários de amanhã. Se na academia todo o plexo de direitos emanados das liberdades de crença e religiosa é esquecido ou ensinado em uma única aula ao longo de cinco anos, qual o resultado a se esperar? Confusão conceitual, má aplicação do direito e, óbvio, restrições indevidas a essas liberdades.
Bem rapidamente, porque a ideia dessa coluna não é ser acadêmica, podemos explicar que a liberdade de crença é uma liberdade de foro íntimo, nos moldes das liberdades de pensamento e de consciência. Enquanto a liberdade de pensamento é aquela em que o ser humano fundamenta suas convicções, a liberdade de crença desenvolve o relacionamento com a divindade. Essas liberdades são praticamente absolutas porque nem o Estado e nem ninguém pode invadir o pensamento e/ou a crença de alguém para obrigá-lo a pensar ou crer dessa ou daquela forma. É na liberdade de crença que o “belief” se desenvolve, como ensina Jonatas Machado, para posteriormente acontecer o “action”, isto é, a externalização da crença. E o direito de externar a crença é o que denominados do plexo de direitos da liberdade religiosa.
A liberdade religiosa é a dimensão externa da crença e protege o religioso nos mais variados desdobramentos de sua fé. Essa proteção é o que a doutrina europeia denomina de “dimensão subjetiva da liberdade religiosa”. É o famoso “eu tenho o direito tal”. O fiel tem o direito público subjetivo de expressar sua fé no espaço público, privado, de forma individual e coletiva, bem como de defendê-la, de angariar prosélitos, de ser ensinado e ensinar sobre ela, além de cultuar publica ou privadamente, individual ou coletivamente seu Deus. Outra dimensão da liberdade religiosa é a institucional: a liberdade de organização religiosa. As confissões religiosas de qualquer credo podem se organizar institucionalmente, com normas próprias, tendo total liberdade de autocompreensão, autodeterminação, autocriação etc. Por fim, ainda temos a dimensão objetiva da liberdade religiosa, essa praticamente esquecida ou desconsiderada no Brasil. A liberdade religiosa possui uma posição privilegiada em qualquer Estado Democrático de Direito, tendo em vista sua função estruturante e ordenadora da sociedade.
As festejadas doutrinas de direitos humanos europeias e norte-americanas lembram que a plena liberdade religiosa resulta em uma comunidade inclusiva e plural. O plexo de direitos (citados antes) decorrentes da liberdade religiosa, além de organizar socialmente o Estado, assegura o gozo dos direitos civis e políticos de seus cidadãos. O grande constitucionalista português Jorge Miranda, em seu Manual de Direito Constitucional, ensina: “Sem plena liberdade religiosa em todas as suas dimensões – compatível com diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado – não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política”.
Em uma simples pesquisa on-line é possível verificar que qualquer democracia efetiva entroniza a liberdade religiosa como uma de suas principais liberdades, quando não a principal, como fazem Portugal, Itália e Espanha, por exemplo. E a liberdade de crença? Essa é interna; até países como o Paquistão a possuem. Evidentemente que sem liberdade de crença não temos liberdade religiosa, porque esta é decorrente daquela. Por que, então, a separação? Primeiro, porque são liberdades distintas e com funções distintas, tanto que alguns países têm uma e não têm a outra; segundo, porque o núcleo essencial da primeira é um, enquanto o da segunda, por óbvio, é outro. Na liberdade de crença o núcleo essencial é o sistema moral da religião do fiel e as implicações sobrenaturais na sua vida; dito de outra forma: “no que creio”, “por que creio”, “para onde vou” e “por que estou aqui”. Na liberdade religiosa o núcleo essencial é dividido na liberdade de proselitismo, ou seja, de dizer aos outros os motivos pelos quais creio e convidá-los a crer também; dessa liberdade depende a própria existência da respectiva religião e a liberdade de culto. O culto é a cerimônia solene realizada individual ou coletivamente, conforme o código moral da respectiva crença, em que o fiel deposita sua adoração e amor à divindade cultuada. É o momento ápice de qualquer religião, e por isso sua liberdade é nuclear no cluster right da liberdade religiosa.
Qualquer democracia efetiva entroniza a liberdade religiosa como uma de suas principais liberdades, quando não a principal
E qual a importância de identificarmos o núcleo essencial das liberdades? A importância está no fato de que os núcleos são os elementos formadores das liberdades. Sem o núcleo a liberdade deixa de existir; logo, em qualquer colisão de direitos o núcleo deve sempre ser preservado. Não preservar o núcleo é ferir o alicerce de uma liberdade. É extingui-la.
Agora, levando em consideração esses conceitos-chave, como alguém pode ser processado, levado à polícia ou demitido por dizer que “menino é menino e menina é menina”, ou que “Deus criou o homem para ter relações sexuais com a mulher e não com outro homem”, sendo que todo o sistema moral que orienta a crença (belief) desse fiel diz exatamente isso?
Vejam onde paramos quando não estudamos de forma vertical uma liberdade tão importante quanto a religiosa! Possamos, nessa semana em que comemoramos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, refletir sobre isso e termos ações concretas no sentido de produzir mais conteúdo científico e acadêmico de qualidade.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos