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A Constituição chamada cidadã de 1988 foi gestada sob a influência de grupos de pressão de toda cor ideológica, com ênfase para o conjunto de ideias e ideais socialistas e neoliberais. Segmentos militares, setores institucionais e da sociedade civil, na sua multiforme expressão, atuaram em intenso e lícito lobby (ministério público, magistratura, advocacia, sindicatos, associações etc) junto aos legisladores constituintes e participaram com voz audível nas comissões temáticas e principalmente nas respectivas subcomissões.
Na Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e da Segurança, que cuidou de definir o papel institucional das Forças Armadas, foram ouvidos entre outros representantes das Forças Armadas e da polícia e o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o saudoso advogado Márcio Thomaz Bastos, advogado do PT e que viria a ocupar a pasta da Justiça no governo petista. A esquerda vocalizada pelo deputado Genuíno não se opunha ao papel das Forças Armadas na proteção contra agressões externas mas pretendia retirá-las da proteção da ordem interna. Concedia, no entanto, o papel às Forças Armadas de garantia das instituições, mas não o de manter a lei e a ordem.
Debatido o texto e levado à Comissão de Sistematização em redação muito similar à do atual art. 142 da CF, seguiu a plenário para aprovação. Assim ficou o texto: Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.
Ainda que na “Política” Aristóteles já tenha desenhado a tripartição, Montesquieu trouxe sistematicamente a divisão dos poderes no executivo, legislativo e judiciário - a funcionarem em autonomia, equilíbrio e harmonia. O avanço irrefreável por um deles sobre o outro, ou a interferência recíproca, a gerar situação de iminente ruptura do sistema político e administrativo por suposto seria resolvido pela próprio mecanismo constitucional. A precariedade e insuficiência de tal concepção, visível no constitucionalismo anglo saxão e no período pós revolucionário francês, levou Benjamin Constant a cogitar da instituição do poder moderador, expresso então no poder real, “situado acima dos fatos, e que, sob certo aspecto, seja neutro, a fim de que sua ação se estenda a todos os pontos que se necessite e o faça com um critério preservador, reparador, não hostil. O verdadeiro interesse deste poder é evitar que um dos poderes destrua o outro, e permitir que todos se apóiem, compreendam- se e que atinem comumente”. As ideias de Constant foram grande e pioneiramente incorporadas à primeira constituição brasileira, de 1824, que reservou a D. Pedro I o poder moderador, autorizado pelo art. 98, da CF.
À concepção de Benjamim Constant subjaz a ideia de o sistema político-jurídico-governativo não reunir ferramentas suficientes para a resolução do conflito pela intransigência dos poderes em conflito, devendo a solução ser apresentada por uma instância distante das partes contrapostas, cuja decisão jurídica e justa teria caráter de obrigatoriedade, condição que implica necessariamente o uso da força. Lembra Pascal que “a justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força é contestada, porque há sempre maus; a força sem a justiça é acusada. É preciso portanto pôr em conjunto a justiça e a força, e, por isso, fazer com que o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo.”
A Comissão Afonso Arinos, instituída por meio do Decreto nº 91.450, de 18 de julho de 1985, pelo ex presidente Sarney para elaboração de um anteprojeto que servisse de base aos trabalhos da assembleia Nacional constituinte, da qual fizeram parte, entre outros notáveis juristas, Ives Gandra da Silva Martins, Miguel Reale e Miguel Reale Júnior, criou o Conselho de Defesa Nacional, presidido pelo Presidente da República, composto pelos membros do Conselho do Estado, do Presidente do Conselho, do Ministro da Justiça, dos Ministros das Pastas Militares e do Ministro das Relações Exteriores com competência para manifestar-se, por iniciativa do Presidente da República, em assuntos relevantes referentes à defesa da independência da soberania e da integridade do território e principalmente à garantia da ordem constitucional. Incorporado à CF de 1988, por intermédio do art. 91 da CF, regulado pela Lei 8.183, de 11 de abril de 1991, ficou Conselho de Defesa Nacional como órgão consultivo da presidência da República. Não se pode afirmar que o Conselho no anteprojeto de Afonso Arinos significasse verdadeiro poder moderador - e bem poderia sê-lo -, mas sua manifestação sobre a garantia da ordem constitucional trazia a responsabilidade de deliberação sobre eventual conflito entre os poderes.
Por questões de natureza política, o trabalho da Comissão Afonso Arinos não foi encaminhado por Sarney à assembleia constituinte como texto base fundamental, sendo, porém, grandemente aproveitado principalmente para a redação do art. 142 da Constituição.
Ives Gandra da Silva Martins acompanhou muito de perto os trabalhos da Constituinte, próximo ao relator Bernardo Cabral. Em diversas e recentes manifestações, Gandra Martins assegura a intenção normativa e a finalidade político-institucional do art. 142 de prever uma intervenção pontual das Forças Armadas, uma espécie desidratada de poder moderador, para garantir os poderes da República e também a lei e a ordem, sempre que convocadas por esses mesmos poderes e nos estritos limites do chamamento.
Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, e com a atuação muito destacada do General Alberto Cardoso, chefe do gabinete militar (hoje GSI) a que insistentemente FHC conferia status de ministro, foi editado o Decreto n. 3897, de 24 de agosto de 2001. Este decreto que regulamentou a Lei Complementar n 97, de 9 de junho de 1999 - que disciplinou a intervenção militar - sequestrou dos poderes legislativo e judiciário a autonomia para requerer diretamente a intervenção, pontual, das Forças Armadas para garantia das instituições e para garantia da lei e da ordem. Em dispositivo voltado ao, para usar termo muito em voga, empoderamento do executivo, FHC estabeleceu exclusivamente e indevidamente , a si, ao Presidente da República, e contra a previsão constitucional, a prerrogativa de pedir a intervenção pontual das Forças Armadas, ajuizando e deliberando autonomamente sobre o pedido dos titulares dos demais poderes. Não é ocioso lembrar que houve repetidas intervenções de militares durante o governo de FHC, p.ex. na greve dos petroleiros, mas em especial no combate ao narcotráfico - num alinhamento com os EUA - e nas ações de protesto do MST, gente por ele definida como de mentalidade fascista, “uma parte radical da sociedade voltada para o vazio”.
No regime democrático os poderes podem desequilibrar-se, não faltando exemplos de avanço e de emasculação de um poder pelo outro. Na recente história institucional brasileira a hipertrofia do Judiciário, em especial do STF, é escandalosa, a invadir com frequência preocupante a competência do legislativo e do executivo, sob o argumento muito autoritário e sofismático de que “decisão do Judiciário é para ser cumprida”, ou impugnada pelos meios recursais dispostos no sistema.
Por essa lógica, e para não citar casos concretos recentes mas argumentando hipoteticamente, eventual decisão irrecorrível do plenário do Supremo sobre a cassação de deputado ou senador, sem o devido processo constitucional; a determinação, p.ex. de que todas as reuniões ministeriais estratégicas e todas as reuniões ministeriais sejam públicas e veiculadas pelos meios de comunicação; a declaração de impeachment do presidente sem obediência ao devido processo estabelecido na própria Constituição, que reserva tal competência de decisória ao Senado; v.g. a decisão, mediante provocação do Executivo, de que a decisão do Senado de impeachment não vale e por isso o presidente permaneceria no poder; a decisão de exoneração de ministro; ou a hipotética decisão, provocada por pedido jurisdicional de partido político, de convocação pelo Supremo de uma nova Assembleia Constituinte - e os exemplos poderiam ser citados ao infinito -, por suposto todas elas seriam incontrastáveis, cabendo aos demais poderes e aos súditos a obediência, porque “decisão judicial não se discute, se cumpre”. O STF teria a prerrogativa de sempre errar por último, frase de Rui Barbosa que se dirige à atividade legitimamente jurisdicional e certamente não se aplicará a essas hipóteses de gigantismo patológico e desvio democrático de um poder a que falta a legitimidade popular e que se prova um guardião infiel da Constituição.
Contudo, a oposição à “ditadura do judiciário”, ideia de absoluto consenso principalmente entre os juristas e profissionais do direito, tem-se esmaecido diante do receio crescente de uma intervenção militar de larga escala. O argumento parece deixar o solo jurídico para nutrir-se de um componente psicológico perigoso: o medo. A intervenção pontual moderadora marcaria a fissura no dique democrático e levaria ao arrebentamento das contenções à ditadura e os militares em aluvião, a montante e a jusante, tomariam conta do poder.
Sob o medo, as decisões sempre correm o sério risco de serem equivocadas
O medo é mau conselheiro. A percepção subjetiva do risco frequentemente é contaminada com fatores pessoais e com recalques histórico-sociais-políticos que geram um espécie de neurose que desencadeia uma histeria coletiva capaz de embotar o raciocínio, subtrair o bom senso e trabalhar contra a sabedoria situacional, aqui entendida como o bom funcionamento do aparelhamento psíquico e o equilíbrio psicológico que permitem uma decisão orientada pela análise o quanto possível isenta do conjunto significativo dos dados à disposição e da utilização de todo esse conjunto para uma decisão mais adequada à situação concreta da vida.
Sob o medo, as decisões sempre correm o sério risco de serem equivocadas.
Nesse sentido, a tolerância à “ditadura do judiciário”, e a ressignificação interessada dos valores, princípios e normas de regência da atuação e de limites dos poderes constituídos levarão a que já não se tenha a segurança jurídica provinda e provida pelo direito. Aceita-se um poder voluntarista e incontrastável.
Esse medo não permite ajuizar adequadamente sobre a realidade e efetividade do risco de uma intervenção militar pontual tornar-se uma intervenção generalizada. Excluídos os arroubos presidenciais - cuja seriedade chega à zombaria - e a manifestação por vezes enigmática do General Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, repetidas vezes as lideranças militares têm reafirmado o compromisso com a ordem constituída e com a Constituição. Negam o apoio incondicional ao presidente, que deve conter-se nos limites legítimos de suas funções.
Assim, entre a aceitação de uma instância moderadora pontual e restrita (atualmente as Forças Armadas, mas poderá ser o Conselho Nacional de Segurança ou qualquer outro órgão a que a Constituição atribua tal competência) , de contenção dos perigosos espasmos ditatoriais agora do Judiciário - todavia contrações possíveis a qualquer outro poder -, prefere-se contemporizar com o Supremo Tribunal Federal em sua conduta sem limitação jurídica e institucional. Não é demais lembrar Toffoli, atual presidente do STF: “Não somos mais nem menos que os outros poderes. Com eles e ao lado deles, harmoniosamente, servimos. Servimos ao povo e à nação brasileira.”
*David Teixeira de Azevedo é advogado criminalista e professor livre docente de Direito Penal da USP. Mestre e Doutor em Direito pela USP. Pós-graudado em Direito Penal Econômico e Europeu, pela Universidade de Coimbra e IBCCrim. Presidente do Instituto de Juristas Cristãos do Brasil, Vice-Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB/SP. Conselheiro do IBDR, é membro de diversas instituições, como IBDR, IASP, AASP, IBCCrim, IJCB, entre outras.