Retomando a nossa trilogia sobre os direitos fundamentais, nosso propósito com o presente ensaio é o de trazer luzes sobre a dignidade da pessoa humana, entronizada pela Constituição brasileira como um dos fundamentos da República, no artigo 1.º, III. Como afirmamos em nossa obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas, “a dignidade da pessoa humana deve ser o norte da aplicação do Direito em nossa nação (...). Assim, todos os princípios constitucionais devem se confrontar com a dignidade da pessoa humana, para, então, conformarem-se com ela”.
A pergunta de um milhão de dólares poderia ser: “por que os direitos fundamentais devem se conformar à dignidade da pessoa humana”? A resposta está em nossa nova obra, lançada recentemente: A laicidade colaborativa brasileira: da aurora da civilização à Constituição brasileira de 1988. O objeto da obra foi o estudo aprofundado, sob o ponto de vista histórico, político e jurídico, da relação entre a igreja e o Estado. Na terceira parte da obra investigamos essa relação no Brasil, desde seus primórdios enquanto colônia de Portugal até a Constituição atual e, necessariamente, passamos pelas origens e importância da dignidade da pessoa humana. Reproduzimos hoje, na coluna, parte desse estudo, que o leitor poderá conferir com mais detalhe nas páginas 230 a 240 de nossa obra.
Dignidade da pessoa humana
Alguns podem pensar que a dicção “pessoa humana” é um pleonasmo; contudo, na verdade, remete às próprias naturezas de Cristo, conforme definido no Concílio de Niceia e reforçado nos concílios posteriores: de que Jesus Cristo, quando caminhou sobre a Terra em sua primeira vinda, possuía a natureza divina, logo, estão presentes a pessoa divina e a natureza humana, então: pessoa humana. É por isso que existem as pessoas divinas, quais sejam: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, e as pessoas humanas, representadas por cada pessoa integrante da humanidade. Ademais, partindo do pressuposto de que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, dotando-o de autonomia racional e moral, então temos como consequência lógica que todos os direitos fundamentais e a própria dignidade da pessoa humana decorrem dessa ideia.
O valor do ser humano advém de seu valor interno, visto que possui um fim nele mesmo, e esse valor interno chamamos de dignidade da pessoa humana, o terceiro fundamento da República brasileira, da qual decorrem todas as liberdades civis fundamentais e políticas. É porque o homem possui esse valor interno que tem direito às liberdades civis fundamentais, às liberdades políticas e aos direitos sociais. Paulo Bonavides, citado por Sarlet, ensina que a dignidade da pessoa humana é o “princípio supremo no trono da hierarquia das normas; esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados”. Vejamos o que ensina Kant: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. [...] o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer dignidade (Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos)”.
A dignidade da pessoa humana não está ligada apenas à racionalidade do homem, mas, notadamente, em ser partícipe do divino bem
Observa-se que, para Kant, a dignidade humana é um valor intrínseco que o homem carrega em razão de não poder ser usado como meio, porque possui um fim em si mesmo, como ele discorre em Crítica da razão prática, e principalmente na Fundamentação da metafísica dos costumes: “Agora eu afirmo: o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim (Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos)”.
A dignidade humana é provida de moralidade, juntamente com o homem ou com a própria humanidade, pois é esta que pode fazer o homem um ser racional em si mesmo, ou, como diria o próprio Kant: “é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade”. E, por mais que Kant não reconheça expressamente que a dignidade humana tenha seu valor interno ancorado em Deus, reconhece que, para as condições de realizabilidade do sumo bem, Deus e a imortalidade da alma devem estar presentes, pelo menos como reflexão e como necessidade prática. Como vemos em Boécio, a dignidade da pessoa humana não está ligada apenas à racionalidade do homem, mas, notadamente, em ser partícipe do divino bem: participar em Deus ao escolher fazer o bem, ou, como ensinavam Platão e Aristóteles, em participar do Ser.
Com influência em Boécio, Tomás de Aquino ensina, em sua Suma Teológica, que a dignidade humana está diretamente relacionada à racionalidade, e esta, por conseguinte, ao ter sido o homem criado à imagem e semelhança de Deus: “O homem é considerado imagem de Deus, não pelo corpo, mas pelo que o torna mais excelente que os outros animais; por isso, a Escritura, depois de ter dito (Gn 1, 26): Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, acrescenta: O qual presida aos peixes do mar etc. Ora, o homem é mais excelente que todos os animais, pela razão e pelo intelecto. Donde, pelo intelecto e pela razão, que são incorpóreos, é a imagem de Deus”.
Assim, como conclui o professor Jónatas Machado, o homem possui “dignidade intrínseca porque foi criado à imagem de Deus”, um Deus que “é um ser racional e moral (Estado Constitucional e neutralidade religiosa)”. Falar em dignidade da pessoa humana implica o reconhecimento de que temos capacidade moral, e a temos porque fomos criados à imagem e à semelhança Dele, participamos de sua racionalidade e moralidade. E, consequentemente, a dignidade da pessoa humana deve ser observada de forma integral na vida do ser humano e, nesse sentido, “a liberdade religiosa, essencial à vida de cada pessoa e à sobrevivência da sociedade, até de forma a se evitar o caos, é direito fundamental, absolutamente conectado à dignidade humana” (Heloísa Sanches Querino Chehoud, A liberdade religiosa nos Estados modernos).
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Ou seja, a dignidade da pessoa humana está diretamente ancorada em uma ideia de Deus e foi desenvolvida como a conhecemos hoje a partir dos primeiros cristãos, passando por Boécio, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, todos personagens com fortes raízes no cristianismo. Desta forma o seguinte silogismo é possível: se os direitos fundamentais têm como objetivo último e mais importante criar meios para que a dignidade da pessoa humana floresça na sociedade política, não podemos divorciar dessa equação a importância da influência da fé em um Deus pessoal e racional, pois, sem essa influência, nem ao menos a ideia de dignidade da pessoa humana existiria, tal qual como a conhecemos. Fica a reflexão!
Na última série de nossa trilogia, vamos falar um pouco sobre sua eficácia e o que devemos fazer quando os direitos colidem entre si.
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