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A facilidade para ter acesso ao abortos com alegação de ter sido vítima de violência sexual pode dar brechas para a realização da prática em gestações de relações consentidas.
Imagem ilustrativa.| Foto: Andre Borges/Agência Brasília

Em meio à discussão da semana, sobre a urgência do PL 1.904/2024, que trata da equiparação do crime de aborto ao crime de homicídio quando praticado após a 22.ª semana de gestação, obviamente as agulhas de parte da mídia, sociedade e mundo político se voltam para aqueles que, advogando pela vida (da mãe e do indefeso bebê), o fazem movidos pela moralidade advinda dos valores religiosos, especialmente do cristianismo.

Neste contexto, em que o diálogo acaba e só se ouvem gritos, vozes particulares contam pouco – por mais barulho que façam. Mas vozes institucionais, que têm o megafone na mão, essas falam bastante. E uma delas foi a do secretário nacional de Segurança Pública, Marcos Sarubbo, em entrevista ao portal UOL na qual afirmou o seguinte:

Religião é uma coisa, e as leis têm de ser outras. O Brasil é um país laico. A religião não pode pautar determinada legislação, notadamente, essa do aborto. Opinarei contrariamente.”

O objetivo do nosso comentário aqui será focado nesta declaração, não adentrando especificamente no PL em si – por enquanto. Sabemos o quanto este tema é sensível, e que, ao despertar paixões, faz baixar nossa guarda de racionalidade. Numa democracia, tudo o que temos é a força das ideias e das palavras: fora disso perdemos a civilização e voltamos à barbárie. O “todas as vidas importam” também vale para as que estão dentro de um útero.

Se os religiosos não podem dar sua contribuição para as soluções da pólis, onde está sua cidadania, sua dignidade? Se apenas uma visão de mundo conta, onde fica o pluralismo?

Mas a questão permanece: a religião realmente não tem direito de “dar pitaco” no processo de formação legislativa? Temos de ficar “cada um no seu quadrado”? Até onde se pode concordar que há espaço para que as vozes religiosas tenham vez na arena pública?

Começo com o artigo 1.º da Constituição. Os cinco incisos que trazem o fundamento da República elencam soberania, cidadania, dignidade humana, valores sociais do trabalho e livre iniciativa, e pluralismo político. Tudo o que vem depois no texto constitucional deve estar fundado nestes princípios. Cada minoria importa para dar sua opinião e visão de mundo, formam-se os consensos e se legitima pela força do voto. Ou seja, o processo político não é perfeito (longe, bem longe disso), mas é o que temos.

Quando um agente político, investido de um cargo público, diz que uma determinada minoria não pode opinar – neste caso, a religião (e não a confissão religiosa, porque não vimos igrejas lá, mas deputados e senadores) –, aí temos um grave problema de visão equivocada. Se os religiosos não podem dar sua contribuição para as soluções da pólis (daí a palavra “política”), onde está sua cidadania, sua dignidade? Se apenas uma visão de mundo conta, onde fica o pluralismo?

Assim sendo, refuto o primeiro argumento. Religião e Estado realmente são distintos e autônomos, mas não são inimigos. Eles conversam, trocam ideias, e, inclusive, unem-se pelo bem comum, como diz o artigo 19, I da nossa Constituição. Somos um Estado laico, não um “país laico”: o Estado serve à sociedade, e esta é 92% religiosa, 90% cristã, 40% evangélica e 50% católica.

Agora, a pergunta decorrente: legislar valores morais é algo válido? Pode a “religião pautar determinada legislação”? Aqui temos conflitos infinitos para tratar, entre uma visão jusnaturalista ou juspositivista, que não teremos tempo de explicar a fundo, mas vai aí um resumo bem simplista: enquanto quem enxerga a supremacia do Direito Natural vê no Estado um ente burocrático feito para servir à sociedade política e que deve se focar e limitar a dirimir conflitos humanos observados à luz da realidade observável, os adeptos do positivismo enxergam uma função emancipadora e criadora de novas realidades a partir das armas que a Lei e o Direito proporcionam: mudar as coisas à base da força.

Pelo lado puro e simples da coisa, o que vale é o que diz o professor Anthony Esolen:

“A lei não serve para outra coisa a não ser codificar a moralidade. Todas as leis guardam alguma relação, por distante que seja, com uma avaliação moral do bem e do mal. Não podemos escapar da fazer escolhas morais.”

Ao fazermos escolhas morais, a ficção jurídica da democracia entrega ao conjunto de representantes a força do “nós, o povo”. Se um povo tem uma moralidade pública de defesa da vida, é natural que a maioria a escolha, e bloqueie tentativas de implantação de culturas da morte entre nós.

O Brasil está amadurecendo aos poucos para processos de vigilância política pela sociedade, e sente as dores do crescimento. Há quem queira jogar baixo, trazendo o Judiciário a apitar sempre que perde no voto, o que gera os problemas que estamos enfrentando. Mas não podemos desistir de buscar o consenso no diálogo, e aprimorar a democracia. E, sim, a religião tem muito a contribuir para enxergar um Brasil melhor. É só pensar que foi ela a responsável pelo desencadear de progresso que nos leva a estar lendo um artigo em um computador plugado a uma rede mundial de computadores.

Cresçamos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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