A recente Lei Federal 14.786, de 28 de dezembro de 2023, “cria o protocolo ‘não é não’, para prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e para proteção à vítima; institui o selo ‘não é não – mulheres seguras’ e altera a Lei 14.597, de 14 de junho de 2023 (Lei Geral do Esporte)”.
Esta nova lei traz em seu bojo políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher, criando mecanismos para a garantia de seus direitos. O artigo 2.º da referida lei engloba o endereçamento prático do âmbito de proteção contra violência à mulher, nominando os locais onde os protocolos devem ser implementados: “ambientes de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas”.
Na era dos tabus (inclusive aqueles criados por certas supremas decisões), a discussão sob qualquer ângulo de determinados temas se torna um desafio adicional nesta quadra do involuído século 21. O que mais incomoda é que a “lacração” e o patrulhamento ideológico se dão pela captura de temas relevantes, importantes e, neste caso de hoje, diria mesmo essenciais: o respeito pelas mulheres, traduzido em leis que garantam sua incolumidade física, e sua autonomia de vontade para fins de exercício de seus afetos.
A lei quer proteger as mulheres em ambientes de eventos de entretenimento, especialmente em lugares onde se sugere a interação entre pessoas para fins românticos
Isso porque, pelo princípio de interpretação jurídica da teleologia, onde se busca a intenção do legislador ao criar uma lei, está muito claro que se quer proteger as mulheres em ambientes de eventos de entretenimento, especialmente em lugares onde se sugere a interação entre pessoas para fins românticos – de curtíssimo ou até longo prazos. Até mesmo a música popular brasileira celebra estes encontros, como no famoso clássico do Lulu Santos “todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite”.
Onde está, então, a polêmica com a religião?
O parágrafo único do mesmo artigo 2.º diz que “o disposto nesta lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa”. Foi o suficiente para colocar em pé de guerra os patrulheiros lacradores antirreligiosos – ou cristofóbicos, para colocar em termos que os mesmos usam e dos quais gostam.
Sabe-se que nenhum lugar ou instituição está livre da chaga do assédio sexual. Em ambientes religiosos, por mais incoerente que seja com o espaço e o propósito do lugar, ele também ocorre. É, inclusive, matéria recorrente em nossa atuação profissional para milhares de igrejas no Brasil a recomendação de políticas e protocolos para clérigos, membros ordenados e voluntários nas igrejas que previnam ou combatam tanto o “constrangimento” quanto a “violência” de cunho sexual – os termos em aspas aqui foram utilizados por serem os mesmos que trata a lei em comento.
O que não se pode tolerar, no ambiente de laicidade colaborativa – que é onde se posiciona o texto constitucional brasileiro –, é enxergar discriminação ou conivência por parte do Estado para com as igrejas por elas não estarem diretamente ligadas a uma lei que prevê protocolos de segurança para... boates!
Como já disse, a intenção do legislador é proteger mulheres que saem para se divertir, e, querendo, relacionar-se com outras pessoas. Sua vontade deve ser respeitada, para o “sim” e para o “não”. Qualquer forma de violência deve ser combatida.
A intenção do legislador é proteger mulheres que saem para se divertir, e, querendo, relacionar-se com outras pessoas. Não há motivo para indignação pelo fato de igrejas não terem sido mencionadas na lei
Isso não faz da igreja um “ambiente livre para assediar” só porque a lei em questão as isentou de treinarem funcionários (muitas igrejas não os têm) para ativarem o protocolo; seria uma lei genérica e não levaria em consideração as milhares de pequenas igrejas – isso para não mencionar templos de outras religiões, o que adicionaria milhares aos milhares – onde não há qualquer estrutura para isso.
E as “igrejas nas casas”, os “grupos de oração”, e por aí afora? Não seria esta uma lei que, mesmo com a nobre e importante intenção de proteger a dignidade da mulher em ambientes de entretenimento, colocaria um peso em ambientes onde não é esta a proposta? Andou bem o Congresso em aperfeiçoar esta lei trazendo a exceção, e o Executivo em sancionar o diploma sem vetar este dispositivo.
Que todos cuidemos de proteger os direitos das mulheres de dizerem “não” a quaisquer investidas indesejadas. Que todos cuidemos do direito das confissões religiosas de serem reconhecidas como casas de oração, onde a proposta e a intenção dos ajuntamentos é prestar adoração a Deus e ao crescimento espiritual das pessoas. Cada coisa no seu lugar.
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