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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

"Discurso de ódio"

Rasguem suas Bíblias! Na república brasileira é proibido falar do diabo

Imagem ilustrativa. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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O caso de perseguição religiosa extrema da semana, do mesmo nível da opressão islâmica, é o da condenação criminal de um pastor no Recife por dizer, fundamentado na Bíblia, que certa religião faz culto a demônios: Antes, digo que as coisas que os gentios sacrificam, as sacrificam aos demônios e não a Deus. E não quero que sejais participantes com os demônios. Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios” (1 Coríntios 10,20-21).

O Ministério Público denunciou o pastor Aijalon Heleno Berto Florêncio por proferir suposto “discurso de ódio” contra pessoas de religião de matriz africana em uma publicação no Instagram, alegando que ele teria violado o artigo 20, § 2.º, da Lei 7.716/89, que trata do crime de racismo. O Ministério Público pediu sua condenação, a reparação de danos morais coletivos no valor de R$ 100 mil e medidas cautelares para a exclusão de publicações com “discurso de ódio” e uma multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento. Após o acusado descumprir as medidas cautelares, o Ministério Público solicitou a suspensão de sua conta no Instagram, levando à prisão preventiva. O juiz criminal, posteriormente, julgou procedentes os pedidos da denúncia, condenando o réu a pena de dois anos e seis meses de reclusão, multa e reparação por dano moral coletivo. O Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos do IBDR emitiu parecer com muito rigor técnico, apontado os erros da sentença, e que julgamos necessário compartilhar com os nossos leitores, reproduzindo aqui alguns trechos selecionados

Da liberdade religiosa e liberdade de expressão

As liberdades religiosa, de crença e de consciência são princípios fundamentais de importância duradoura no mundo civilizado, motivo pelo qual são também consagradas nas Constituições de nações democráticas. A liberdade religiosa, positivada no artigo 5.º, incisos VI e VIII, da Constituição brasileira de 1988, refere-se à externalização do que se crê (action), protegendo a conduta, omissa ou comissiva, do fiel de acordo com seus preceitos religiosos, abrangendo, portanto, o livre exercício de consciência, crença e culto.

Ora, da liberdade de crença decorre o plexo de direitos relativos à liberdade religiosa, isto é, não há plena liberdade de crença caso não seja garantida a liberdade religiosa, sendo que essa última pode ser materializada pela defesa pública da fé, cultos, proselitismo, ensino de dogmas/crenças, mas nelas não se esgota, configurando, para além dos direitos subjetivos de proteção à manifestação, princípio de ordenação social e política do Estado, com impacto na vida pública.

A liberdade religiosa não se limita à proteção à crença do fiel, mas, também e principalmente, protege a externalização da fé, seja no espaço público ou no privado

Portanto, como se vê, a liberdade religiosa não se limita à proteção à crença do fiel, mas, também e principalmente, protege a externalização da fé, seja no espaço público ou no privado, mas, além dessa liberdade, inclui a liberdade de expressão religiosa, pois, se ao fiel e aos líderes religiosos inexistisse a tutela da liberdade de expressão e do proselitismo religioso dentro de sua fé e de suas convicções religiosas, essenciais para conversão dos fiéis, estar-se-ia diante de indiferença religiosa, que é o oposto à proteção constitucional. Nesse sentido, o ensinamento decorrente da liberdade de culto, no qual se pretenda a conversão dos fiéis, torna indispensável expor a unicidade de fé, pois, para os cristãos, “(...) haverá um só rebanho e um só pastor” (João 10,16). Logo, tolher a livre a prática religiosa configura evidente ataque à liberdade de expressão religiosa; núcleo central da fé.

No âmbito religioso a liberdade de expressão atua no aspecto externo, pois permite aos fiéis, líderes religiosos e outros indivíduos exporem suas ideias e crenças, seja nos templos e cultos, nos espaços públicos ou até mesmo nas redes sociais. Observa-se, portanto, que a tutela do direito à liberdade religiosa subsiste somente quando há o exercício do discurso religioso, possibilitando aos indivíduos a procedência com a instrução religiosa, núcleo formador da sua autodeterminação.

Proselitismo religioso: o núcleo formador da liberdade religiosa

Não há como subsistir uma ordem constitucional democrática sem pressupor e garantir a preservação do direito fundamental à liberdade de expressão religiosa. Essa liberdade é exercida por intermédio do proselitismo religioso, o qual pode, em síntese, ser entendido como o convencimento de determinado indivíduo acerca das crenças religiosas que professa.

Por outro lado, na ordem internacional vigente, o direito ao exercício do proselitismo religioso encontra guarida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, em seu artigo 18, prevê que “todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular”, bem como na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), que dispõe, em seu artigo 12, “a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado”.

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Como se vê, o proselitismo religioso, além da tutela constitucional, encontra defesa na ordem internacional, em razão da sua importância não só para a conversão dos indivíduos, mas também para direcionar o comportamento dos adeptos à religião, que não pode ser confundido com crime de intolerância. A limitação ao proselitismo religioso restringe, também, o direito aos cidadãos de acesso a qualquer informação religiosa, que decorre do direito às liberdades de consciência, de crença, de expressão e de pensamento. Além disso, o Estado que visa a delimitá-lo se coloca em posição de julgador da verdade acerca de determinadas crenças religiosas, interferindo, portanto, na autonomia delas.

Neste contexto é importante destacar que o núcleo formador da fé cristã, a Sagrada Escritura como mandamento divino, ordena que todos os fiéis e líderes religiosos busquem a conversão dos demais e os tornem discípulos do que consideram como revelação e inspiração oriundo do cânon, justificado por suas diversas formas, a saber: ensino por meio da pregação verbal proferida nos templos religiosos e locais de adoração, bem como utilização dos meios de comunicação existentes, distribuição de panfletos, livros, revistas etc.

Com a evolução tecnológica, os meios de comunicação (redes sociais, televisão e rádio) se tornaram o principal meio de efetivação do proselitismo religioso, em razão de alcançarem o maior número de pessoas. Portanto, é óbvio que haverá um público receptor, ou alvo (targets), do discurso religioso. Ressalta-se que a pessoa religiosa que anela a conversão de alguém ou pretende ensinar os dogmas de sua fé o faz, muitas vezes, sob o argumento de hierarquização entre religiões, quando busca demonstrar a superioridade de sua crença em razão das demais. Embora inexistam, na ordem constitucional, direitos absolutos, o proselitismo religioso encontra barreiras apenas quando há existência de discursos de ódio, podendo, nesse caso, sofrer restrições.

Sobre isso, o Supremo Tribunal Federal entendeu que: “é natural do discurso religioso praticado pelas igrejas, em especial pelas instituições daquelas religiões de pretensão universalista, pregar o rechaço às demais religiões. Essa postura integra o núcleo central da própria liberdade de religião” (Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 134.682, grifo nosso).

O Estado que visa a delimitar os limites do proselitismo religioso se coloca em posição de julgador da verdade acerca de determinadas crenças religiosas, interferindo, portanto, na autonomia delas

Breves considerações acerca do hate speech e do proselitismo

Para compreensão do que é “discurso de ódio” e do que, de fato, está protegido pelo discurso religioso (proselitismo), Tad Stanhke, em Proselytism and the Freedom to Change Religion in International Human Rights, oferece quatro critérios para análise dos proselitismos próprio e impróprio: 1. the attributes of the source (características da fonte); 2. the attributes of the target (características do alvo); 3. where the action alleged to be improper proselytism takes place (os espaços onde ocorrem os proselitismos impróprios); 4. the nature of the action (a natureza da ação). A utilização desses critérios, para o autor, é essencial para a garantia da liberdade religiosa, bem como para o equilíbrio estatal para intervir em situações que de fato exijam, pois, uma restrição exacerbada ao proselitismo religioso, o que pode resultar em um sufocamento à capacidade de expressar livremente as suas crenças religiosas ou, até mesmo, de renunciar a elas.

No entanto, atentar-se-á apenas para a natureza da ação, uma vez que é considerada como o principal fator de separação entre o proselitismo adequado e o impróprio. Nesse quarto critério, analisa-se o potencial de coerção entre a origem e o destino. Ou seja, o proselitismo impróprio se encontra inserido na tentativa de converter, por meio de violência ou ameaça: há hostilidade religiosa. Já no outro extremo, os discursos são, embora acalorados, críticas sobre os erros de determinadas religiões. Nesse sentido, as críticas a determinadas religiões, quando formuladas por linguagem ofensiva aos símbolos, doutrinas, deuses, Deus, santos etc., apresentam dificuldades em serem analisadas, pois i. a superioridade de crença não pode ser motivo para ser confundida com manifestação ilegítima ou imprópria; ii. a interferência estatal, nesses casos, representa ausência de neutralidade, podendo abrir portas para decisões pautadas em ideologias, que restringirão não só a liberdade de expressão religiosa, mas também o pluralismo de ideias.

No campo religioso, nem todas as palavras professadas devem ser cerceadas e combatidas pelo Estado, sob pena de ilegitimidade e restrição ao direito às liberdades religiosa e de crença, justamente pelo fato de se estar concedendo ao poder secular o atributo de ditar o que é ou não pertencente aos dogmas da fé. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou em situações semelhantes, entendendo que:

“O discurso discriminatório criminoso somente se materializa após ultrapassadas três etapas indispensáveis. Uma de caráter cognitivo, em que atesta a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles, e, por fim uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, a exploração, a escravização, a eliminação, a supressão ou a redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.” (Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 134.682, grifo nosso).

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É importante se ater à última etapa, núcleo essencial que forma o discurso discriminatório, uma vez que a interiorização de determinada fé não é, por si só, característica do discurso de ódio, necessitando, portanto, de violência, dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais.  Assim, a conduta, mesmo que intolerante, pedante e prepotente, conforme entendimento da suprema corte, está inserida no embate entre as religiões, em essencial a liberdade de expressão religiosa e o proselitismo religioso.

Logo, é evidente que não se pode generalizar e subjetivar o conceito de discurso de ódio quando se está diante de proselitismo religioso, sendo essencial para a formação de tal discurso a presença da última etapa: a hostilidade religiosa. Observa-se, portanto, que o entendimento jurisprudencial da suprema corte se assemelha ao quarto critério de Stanhke, “the nature of the action”, em que, para que ocorra a ilegitimidade do proselitismo, são imprescindíveis a ameaça e a violência, tidas, no ordenamento jurídico, como: a dominação, a exploração, a escravização, a eliminação, a supressão ou a redução de direitos fundamentais.

Dito de outra forma: é necessário que o discurso religioso passe pelo crivo tríplice estipulado pelo STF e doutrina: 1. Cognitivo, diferença entre religiões: religião A é diferente de religião B. 2. Valorativo, em razão de a religião A ser diferente da religião B, aquela é melhor do que esta; e 3. Defesa da dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais, isto é, os membros da religião A podem dominar e/ou explorar e/ou escravizar e/ou eliminar e/ou suprimir e/ou reduzir os direitos fundamentais dos membros da religião B. Ultrapassando essas três etapas, nos termos do exemplo, estar-se-ia diante de discurso de ódio e discriminação, passível de punição pelo Estado, o que não ocorreu no caso em tela, como restará demonstrado a seguir.

Da sentença proferida nos autos n. 0000176-80.2022.8.17.2710

A sentença que condenou o pastor Aijalon fundamentou suas razões no sentido de que os discursos proferidos pelo acusado não encontram guarida no proselitismo religioso. Em síntese, inicia suas fundamentações afirmando que a Constituição brasileira de 1988 assegura a liberdade de fé do acusado, todavia também garante o direito de credo a todos aqueles que professam fés diversas.

“É natural do discurso religioso praticado pelas igrejas, em especial pelas instituições daquelas religiões de pretensão universalista, pregar o rechaço às demais religiões. Essa postura integra o núcleo central da própria liberdade de religião.”

André Ramos Tavares, em O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização

Nesse sentido, em razão de o princípio da dignidade da pessoa humana ser indispensável para garantia da ordem constitucional vigente, não se pode ocorrer à proteção de discursos de ódio por intermédio do proselitismo religioso e da liberdade de expressão. Esse foi o entendimento do magistrado. Todavia, tal afirmativa deve ser analisada com cautela, sob pena de cercear a liberdade religiosa, que garante proteção diversa da liberdade de expressão. Isso se dá porque “a mensagem religiosa não pode ser tratada exatamente da mesma forma que qualquer mensagem não religiosa numa comunidade constitucional inclusiva”, como ensina o professor Jonatas Machado em Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva.

É imperioso destacar que a própria noção de liberdade surge em razão da luta pelo direito de livre crença e pelo exercício dela, pois “A religião é um instrumento que confere dignidade àquele que crê, é um norte para os seus conflitos, um consolo para os tempos de aflição” (Jonatas Machado). A crença no transcendental, por estar inserida no âmago da alma, forma o juízo de valor, a moral e a ética da pessoa religiosa, além de trazer sentido existencial. Sobre essa liberdade, Rui Barbosa disserta que, “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa”.

Desvirtuar ou utilizar indevidamente os valores e crenças de determinada religião, ou, pior, silenciar qualquer um desses valores é uma ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana e à liberdade religiosa. Além disso, por se tratar de fé, que envolve questões intrínsecas e que formam a identidade do homem, é evidente que surgirá o sentimento de ofensa.

Há uma linha tênue que deve ser respeitada quando um direito fundamental individual afeta diretamente o âmbito de proteção a outro direito fundamental individual, principalmente o de crer, a fim de garantir a preservação dos direitos fundamentais, bem como a ordem democrática.

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Nesse sentido, a suprema corte entende, de forma reiterada, que não é toda manifestação ofensiva ou odiosa que constitui discurso de ódio, mas apenas aquelas que incitam a discriminação, a hostilidade ou a violência. É importante citar a decisão do STF no julgamento do Inquérito 4694/DF, acerca de possíveis crimes de racismo em discursos contra minorias (negros, homossexuais e índios). Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes destacou que “declarações desprovidas da finalidade de repressão, dominação, supressão ou eliminação não se investem de caráter discriminatório, sendo insuscetíveis a caracterizarem o crime previsto no artigo 20, cabeça, da Lei 7.716/1989”.

Ressalte-se que, conforme disciplina André Ramos Tavares em O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização, “é natural do discurso religioso praticado pelas igrejas, em especial pelas instituições daquelas religiões de pretensão universalista, pregar o rechaço às demais religiões. Essa postura integra o núcleo central da própria liberdade de religião”. Isso ocorre justamente pelo fato de que o indivíduo, ao se encontrar com a divindade em que crê, compreende a si. Portanto, muitos fiéis ou religiosos acabam por manifestar discursos que se mostram superiores às demais religiões na tentativa de conversão ou de ensinamentos dos dogmas de sua fé.

Todavia, o que se deve entender é que o proselitismo, ainda que acarrete incômodas comparações religiosas, não se materializa, por si só, nas condutas preconceituosas. Diante disso, faz-se necessária uma análise minuciosa do caso em concreto, observando as três etapas exigidas pelo Supremo Tribunal Federal: “Uma de caráter cognitivo, em que é atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles; e, por fim, uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, a exploração, a escravização, a eliminação, a supressão ou a redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior”.

Assim, há de se averiguar se, de fato, as palavras proferidas pelo líder religioso encontram amparo no proselitismo religioso. Inicialmente, observa-se que o pastor, a fim de discorrer acerca dos painéis pintados no Túnel da Abolição, utiliza-se das seguintes expressões: “reverência a entidades malignas, satânicas, espíritos das trevas”, “é culto a demônios, satânico”, “quero denunciar que as pinturas grafitadas no Túnel da Abolição não são apenas gravuras, são pontos de contato com poderes dantescos, com poderes demoníacos”.

Quando o Estado dita o que é ou não céu e inferno, Deus e demônio, há interferência explícita nos conceitos teológicos e dogmáticos de uma religião

Infere-se, dessas expressões, que o réu do processo (pastor) pretende expor que, da sua perspectiva de fé, cristã, as religiões de matrizes africanas estão ligadas a cultos satânicos e demoníacos. O mm. Juízo entendeu que tais expressões não encontram guarida no proselitismo religioso, pois representam discurso de ódio.

Todavia, deve-se ater, primeiramente, ao fato de que os conceitos utilizados pelo pastor são de cunho teológico, pois “inferno”, “céu”, “vida eterna”, “pecado”, “demônio” são todos dogmas religiosos, e, frente “à discriminação que degrada, inferioriza ou subjuga guarda relação com atos humanos de natureza física e psíquica, para guardar relação com natureza espiritual, teríamos de ter um juiz formado em Teologia que usasse a teologia para dizer que fala de tom”.

Nesse sentido, não cabe ao Estado delimitar questões de cunho teológico, ou seja, determinar que expressões sobre “inferno”, “entidades malignas”, “espíritos das trevas” e “demônio” são discriminatórias ou representam discurso de ódio, isso porque, do contrário, estar-se-ia delimitando o que é bem ou mal, conceitos que fogem ao poder secular e pertencem somente às leis eternas, especialmente em um Estado laico! Ora, se existem “inferno e demônios”, existem “céu e Deus”, e o Estado não pode interpretar ou instituir conceitos que pertencem somente a uma religião. Se assim o fizesse, o Estado careceria de laicidade.

Cabe destacar, também, que, embora as expressões utilizadas pelo acusado possam sinalizar animosidade, bem como a hierarquia religiosa, podendo até ser arrogante, isso, por si só, não acarreta discurso de ódio e intolerância religiosa, pois não há direcionamento à escravização, à exploração ou à eliminação violenta das pessoas adeptas a essa crença: o que existe é o rechaço à referida religião, comparativamente aos dogmas cristãos. Ora, é óbvio que, se uma religião pratica atos que são condenados por outra religião, aquela primeira será vista, sob a ótica cristã, como algo diabólico e pecaminoso. Portanto, observa-se que as expressões empregadas não incitam à violência nem pretendem acarretar a utilização da força contra adeptos das religiões de matrizes africanas. Na verdade, é comum, na comunidade cristã, o discurso demonizador, pois ele constitui uma poderosa argumentação no enfrentamento de símbolos e práticas religiosas de outras crenças.

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Quando o Estado dita o que é ou não céu e inferno, Deus e demônio, há interferência explícita nos conceitos teológicos e dogmáticos de uma religião. O Estado deve, em situações como esta, manter a neutralidade, o que não representa indiferença religiosa, para garantia da liberdade de crença, bem como da pluralidade de ideias. Obviamente, não havendo movimentos hostis que incitem violência, disseminação, escravização de uma comunidade ou religião, a interferência estatal se faz imprescindível para garantia do direito às liberdades de crença e religiosa.

Logo, a decisão que condenou o pastor no crime previsto no artigo 20, § 2.º, da Lei 7.716/89 viola não só o direito ao proselitismo religioso, mas também a referente garantia da liberdade religiosa, além de estar em dissonância com o entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido, ao tolher o proselitismo religioso, são indispensáveis as finalidades religiosas, especialmente a cristã, em virtude do mandamento bíblico que determina “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”. (Mateus 28,18-20), posto que estar-se-ia atacando o núcleo essencial da liberdade religiosa e da própria religião, e, ainda, a própria identidade do homem.

Conclusão

Diante do exposto, o Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos (GECL) do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) se posiciona veementemente contra os termos da sentença proferida nos autos, de n. 0000176-80.2022.8.17.2710, que condenou o pastor Aijalon Heleno Berto Florencio pelo tipo previsto no artigo 20, § 2.º, da Lei 7.716/89 (Lei contra o racismo), bem como por danos morais coletivos no importe de R$ 100 mil reais, pois não há, em seu fundamento, requisito processual indispensável à concretização das três etapas, conforme entendimento da suprema corte. Assim, o Estado tem de se manter neutro, a fim de evitar qualquer decisão manifestamente política-ideológica, que não coaduna com a ordem democrática de direito.

(Parecer escrito por Gabriela Neckel Netto e Ezequiel Silveira; revisado por Silvana Neckel, Gabriel Ferreira de Almeida e Thiago Rafael Vieira. Resumo elaborado por Thiago Rafael Vieira.)

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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