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Flordelis na Câmara dos Deputados
Articulista usou caso Flordelis para fazer uma série de afirmações preconceituosas sobre evangélicos.| Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados

O acirramento político no Brasil durante os últimos anos vem tomando proporções maiores e tem alcançado áreas que pouco tempo atrás menos pareciam importar para a sociedade. A crescente participação de religiosos na esfera pública é um desses fenômenos que chamam a atenção e provocam debates muitas vezes acalorados. Percebe-se, no entanto, que está se tornando comum que seja extrapolado o campo das ideias, partindo-se para o ataque ad hominem, e, mais preocupante ainda, fazendo-se notórias as investidas contra grupos e cidadãos identificados por sua religião.

Tomamos como exemplo o texto publicado no site Metrópoles, portal de notícias do Distrito Federal, assinado por Anderson França e intitulado “Todo castigo para crente é pouco”, no qual há clara incitação à discriminação religiosa e incitação ao ódio e à violência. Por causa do recente caso em que a deputada federal Flordelis dos Santos de Souza é a principal suspeita de envolvimento no assassinato de seu próprio marido, o autor sugere que as mãos de todos os evangélicos estão sujas de sangue, chegando a vilipendiar a dignidade destes com palavras vis de baixo calão, nestes exatos termos: “O Jesus evangélico cheirou muita cocaína e saiu de casa com inveja do irmão Satanás, e saiu pela cidade fazendo todo tipo de merda”. Não satisfeito, ainda referindo-se aos evangélicos, afirma que é preciso “pegar as espadas que Pedro lançou contra os soldados romanos, e cravá-las nos filhos do inferno que estão no nosso meio”.

Afirmações como essas apresentam uma agressividade incompatível com o respeito ao pluralismo político, fundamento da República consagrado no artigo 1.º, V, da Constituição Federal, e são antagônicas aos seus objetivos fundamentais, como o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”(artigo 3.º, IV, da Constituição).

Proteção constitucional, tratados internacionais e conflitos de liberdades

A Constituição da República Federativa do Brasil elenca em seu artigo 5.º, incisos VI e VIII, o direito à liberdade de consciência e de crença no rol dos direitos fundamentais, garantindo a proteção aos locais de cultos e suas liturgias, bem como assegurando que ninguém será privado de direitos por motivo de crença. O Brasil é, ainda, signatário do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana dos Direitos Humanos, entre outros tratados que protegem o direito em questão e prezam pela tolerância religiosa.

Como bem enfatizamos em nosso livro Direito Religioso – Questões Teóricas e Práticas, “todas as liberdades emanam da Dignidade da Pessoa Humana, inclusive a de expressão. Em outras palavras, todas as liberdades são servas da dignidade e trabalham para seu crescimento”. Portanto, não se trata de diminuir o grau de importância da liberdade de expressão e de manifestação de pensamento, tão caras à nossa sociedade e também elencada como direito fundamental na Constituição, em seu artigo 5.º, IV e IX. Trata-se, porém, de estimular o seu correto uso e exercício para a persecução do bem comum, ou seja, para servir à sociedade e ao ser humano. Também em nosso livro, escrevemos:

Em razão da liberdade de expressão posso falar qualquer coisa? Entendemos que não e, aqui, damos nossa singela contribuição ao debate. A liberdade de expressão encontra um limite: a dignidade da pessoa humana. [...] Ofender ou criticar uma instituição, entre elas a igreja, encontra guarida na liberdade de expressão, senão vejamos: a igreja, como instituição, pode ser mais ou menos “admirada”, por este ou aquele fiel, mas, regra geral (até por não ser o propósito da igreja instituição), a igreja não é adorada por ninguém. Por quê? Porque a instituição é composta de homens, logo passível de erros. [...] De outra banda, a igreja administra o sagrado, mas não é o sagrado em si. [...] Entretanto, o(s) objeto(s) e divindade(s) de adoração presentes em qualquer credo e fé, por mais que estejam associados a esta ou aquela igreja/instituição, são inerrantes para aqueles que o adoram. [...] Ofender e denegrir o sagrado é um ataque ao mais íntimo do homem. [...] Assim, sempre que alguém solapar o sagrado, é necessário a sociedade civil interpor-se, contrariar, não aceitar [...]. Não há liberdade que, ao colidir com a dignidade humana, resista, porque é a dignidade da pessoa humana que possui o condão de tornar um axioma em liberdade. Não se trata de pesar qual liberdade é mais importante ou maior, se a de expressão ou a religiosa. As duas liberdades, como todas as demais, existem para SERVIR. Servir ao preceito fundamental da Dignidade da Pessoa Humana. Aquela que não a serve, ou pior, que a ofende, não está cumprindo seu propósito, em claro desvirtuamento.

Não se trata de diminuir o grau de importância da liberdade de expressão e de manifestação de pensamento, mas de estimular o seu correto uso e exercício para a persecução do bem comum

Na relação com o indivíduo, é certo dizer, como faz Fernando Barcellos de Almeida em Teoria Geral dos Direitos Humanos, que “liberdade é o campo de atuação do indivíduo imune à intervenção do Estado”. E acrescenta Warton Hertz de Oliveira, em sua dissertação de mestrado, “Liberdade Religiosa no Estado Laico: Abordagem Jurídica e Teológica”: “As liberdades, porém, não consistem apenas em poder agir dentro do que não é vedado ou, tampouco, exigido, mas também, ainda mais tratando-se de direito fundamental, é o poder de exigir do Estado a sua proteção, quando houver a necessidade de tutela nas relações entre cidadãos”.

Interessa também invocar a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a qual, no que tange às liberdades, traz uma perspectiva voltada à relação entre indivíduos. Ela ratifica, em seu artigo 4.º, que “a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem”. Podemos assim dizer, portanto, que o cidadão não goza de liberdade alguma que seja absoluta – sem restrições, pois isso “prejudicaria a liberdade dos demais indivíduos”, nas palavras de Fernando Barcellos de Almeida. Assim, cada direito é limitado pela existência de outros direitos e, extrapolando os limites, sujeita-se a responsabilização.

Desse modo, o direito de expressão e livre pensamento não pode desrespeitar a dignidade do ser humano, sob pena de se afastar totalmente dos objetivos fundamentais de nossa República. As manifestações públicas, escritas ou verbais, carregadas de expressões agressivas e discriminatórias contra a religião encontram-se diametralmente opostas à dignidade da pessoa humana, ao espírito de nossa Constituição e às aspirações de paz e tolerância que a sociedade brasileira almeja em concordância com as nações amigas de todo o globo.

Os crimes contra a religião e de preconceito religioso

A Lei 7.716/89, conhecida como Lei do Racismo, trata, na verdade, de vários crimes de preconceito, não só por raça, cor, ou etnia, mas também por religião, conforme previsto em seu artigo 1.º: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

O artigo 20 da referida lei tipifica a incitação à discriminação ou preconceito de religião, qualificando o crime se este é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. (...) § 2.º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

O artigo 208 do Código Penal, por sua vez, trata dos crimes contra o sentimento religioso, definidos como “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, com pena de detenção de um mês a um ano, ou multa. Além disso, “se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência”.

É importante salientar que, dos crimes contra a honra previstos nos artigos 139 e 140 do Código Penal há uma qualificação específica no artigo 140 , § 3.o, quando “a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”, enquanto o artigo 141, III, majora em um terço, quando “na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria”.

Vê-se, portanto, que no arcabouço jurídico brasileiro há uma proteção especial para a esfera religiosa e o sentimento que advém do apreço dos fiéis por suas instituições e divindades. É algo tão profundamente importante que o desprezar, confrontar, agredir, vilipendiar, caçoar, discriminar, ou incitar à violência por motivos religiosos torna-se matéria de direito penal. Não poderia ser diferente, posto que a liberdade de crença e de culto é um direito humano fundamental reconhecido na Constituição de nossa República e nos tantos tratados internacionais das quais o Brasil é signatário. Deve, assim, ser penalizado todo e qualquer ato que seja contrário ao livre exercício da religião, bem como à fé e à boa consciência que a sustentam.

Os danos morais

Além da contrariedade aos princípios constitucionais e do âmbito criminal relacionado à discriminação religiosa, há ainda de ser tratada a esfera civil. Os crimes contra a liberdade religiosa ensejam o direito à indenização por danos morais quando há lesão provocada por tais atos. Em Programa de Responsabilidade Civil, Sergio Cavalieri Filho ensina ser o dano “lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, qualquer que seja a sua natureza, que se trate de um bem patrimonial, que se trate de um bem integrante da personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade, etc.”

Portanto, em situações nas quais resta evidente que honra, ou imagem, ou dignidade, ou liberdade foram lesadas por meio de publicações em mídia de comunicação ou nas redes sociais, pastores, padres e religiosos ofendidos podem ingressar com ação civil indenizatória contra os autores de textos que incitam o ódio e a violência.

Conclusão

Nesse sentido, somos de parecer que publicações discriminatórias contra religiosos, que incitam a violência contra estes, ou desrespeitam o sentimento religioso: 1. violam diversos dispositivos constitucionais brasileiros, entre eles o artigo 1.º, II, III e V; artigo 3.º, I e IV; artigo 5.º, IV, VI, VIII, X; e artigo 19, I; 2. violam diversos tratados internacionais de que o Brasil é signatário, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto de São José da Costa Rica, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; 3. podem incidir nos artigos 208 do Código Penal; nos artigos 1.º e 20, § 2.º da Lei 7.716/89; nos artigos 139 e 140 (com as cominações do 141, quando for o caso) do Código Penal; e no artigo 186 do Código Civil; e 4. são passíveis de indenização por danos morais quando lesam religiosos em sua honra, imagem, dignidade ou liberdade.

(Esta coluna é uma versão ligeiramente adaptada do parecer do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, assinado pelo seu presidente, Thiago Rafael Vieira, e pelo presidente do Conselho Deliberativo, Davi Charles Gomes, além dos conselheiros Warton Hertz de Oliveira, Franklin Ferreira, Euder Faber, Renato Vargens, Tiago Santos, Valmir Nascimento, Jean Marques Regina, Jeová Barros de Almeida Júnior, Roberto Tambelini e José do Carmo Veiga de Oliveira; do associado efetivo Zenóbio Fonseca; e dos membros aliados Luiz Ricardo Carvalho de Vasconcelos Batista, Luciano Luna, Douglas Roberto de Almeida Baptista, Rafael Durand, Hertz Pires Pina Júnior, Jorge Alwan, Silvana Neckel, Alzemeri Martins Ribeiro de Brito e Wagner Alves da Silva.)

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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