O Fórum Inter-religioso do G20, realizado na capital federal entre os dias 19 e 22 de agosto, é uma plataforma global que promove o diálogo entre diferentes tradições religiosas, governos e a sociedade civil, com o objetivo de criar propostas que contribuam para o aprimoramento das políticas públicas, a promoção da paz, a sustentabilidade e o respeito à diversidade religiosa em todo o mundo.
Reconhecendo o papel fundamental que as comunidades religiosas desempenham na prestação de serviços essenciais de saúde e educação, na assistência aos necessitados, na prevenção de conflitos e na construção da paz, o Fórum se estabeleceu como um espaço indispensável para a troca de ideias e a busca de soluções conjuntas. Sob o tema “Não deixar ninguém para trás: o bem-estar do planeta e de seu povo”, o encontro reuniu lideranças mundiais, ministros de Estado, acadêmicos e líderes religiosos para discutir formas de engajamento e concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.
Como pesquisador especializado em liberdade religiosa, tive a honra de participar deste importante evento ao lado de Thiago Rafael Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) e coautor desta coluna. Durante a minha apresentação, compartilhei reflexões sobre um tema central à minha pesquisa de doutorado: o uso religioso do chá ayahuasca. Embora amplamente estudado no campo das pesquisas médico-científicas, o uso religioso da ayahuasca ainda é pouco explorado pela doutrina jurídica, o que torna essa discussão ainda mais relevante.
O Brasil se tornou um exemplo no cenário global na regulamentação pioneira e segura do uso religioso da ayahuasca
A ayahuasca, também conhecida como Hoasca, Daime e Vegetal, é um chá enteógeno preparado a partir do cozimento da parte lenhosa do cipó mariri (Banisteriopsis caapi) com as folhas da árvore chacrona (Psychotria viridis). Proporcionando um estado ampliado de consciência, esse chá considerado sagrado tem sido tradicionalmente utilizado por povos indígenas da bacia amazônica para fins religiosos e curativos desde tempos imemoriais. A importância cultural da ayahuasca em países latino-americanos é tão significativa que, em 2008, o Peru declarou os conhecimentos e usos tradicionais da ayahuasca, praticados por comunidades nativas amazônicas, como Patrimônio Cultural da Nação.
No Brasil, o uso da ayahuasca tem suas raízes na tradição milenar dos povos indígenas, mas, ao longo do século 20, essa prática se expandiu gradualmente para outros grupos da floresta, especialmente após a chegada à região dos seringueiros, incluindo xamãs, caboclos e pequenos grupos religiosos. A partir da década de 1930, esses grupos começaram a se organizar de maneira mais formal e a se estabelecer nos centros urbanos do país. Entre as principais comunidades religiosas que se formaram nesse período destacam-se o Alto Santo, o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, popularmente conhecido como “Barquinha”, e a União do Vegetal (UDV), cada um com suas particularidades, mas todos compartilhando o uso do chá ayahuasca como elemento central de suas práticas espirituais.
O Brasil se tornou um exemplo no cenário global na regulamentação pioneira e segura do uso religioso da ayahuasca. Essa regulamentação foi desenvolvida através de um Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT), que reuniu representantes do Estado, da ciência e das religiões, criando um modelo de regulação eficaz e respeitoso. Como relatou Edson Lodi Campos Soares, então vice-presidente do GMT: “As deliberações foram alcançadas de modo consensual, respeitando as tradições religiosas e garantindo a segurança e o bem-estar dos praticantes, ao mesmo tempo em que preserva a ordem e saúde públicas, que são responsabilidades fundamentais tuteladas pelo Estado”.
O GMT contou com a participação ativa de pesquisadores de diversas áreas, incluindo antropologia, farmacologia, bioquímica, ciências sociais, psiquiatria e direito, além de convidados pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) e representantes dos grupos religiosos que utilizam a ayahuasca em seus rituais. Esse amplo e cuidadoso debate culminou na edição da Resolução 1, de 25 de janeiro de 2010, do Conad, que consolidou as práticas que garantem o uso religioso adequado e responsável do chá ayahuasca no país.
Nesse sentido, a criação do GMT reflete o dever constitucional do Estado brasileiro de proteger as manifestações culturais populares e indígenas, além de garantir o direito à liberdade religiosa. Esse processo simboliza o coroamento da legitimação do uso religioso da ayahuasca no Brasil, uma trajetória que teve início há praticamente 40 anos, com a formação do primeiro Grupo de Trabalho do Conad (à época, Conselho Federal de Entorpecentes – Confen).
A Resolução 1/2010 não só estabeleceu normas claras e criteriosas, mas também serve de referência para outros países que buscam equilibrar o respeito às expressões religiosas com a necessidade de supervisão estatal. O modelo brasileiro, portanto, destaca-se por sua capacidade de integrar múltiplos saberes e perspectivas em uma abordagem que respeita tanto a liberdade religiosa quanto a saúde e a ordem pública.
Se atualmente existem pessoas que fazem um uso recreativo e inadequado da ayahuasca, é fundamental separar o joio do trigo e não penalizar confissões religiosas sérias
Durante minha apresentação, também abordei a expansão internacional dessas práticas religiosas, com destaque para o caso da União do Vegetal nos Estados Unidos. A Suprema Corte dos EUA, após uma investigação rigorosa, reconheceu por unanimidade o direito da UDV de comungar seu sacramento, fundamentando-se na sinceridade da crença dos filiados e em estudos que atestaram a segurança do uso do chá dentro do contexto religioso. Essa decisão histórica resultou na formalização de um acordo entre o governo americano e a instituição religiosa, estabelecendo um modelo de regulação que, ao longo de quase 20 anos, demonstrou ser altamente eficaz, sem registros de danos à saúde ou desvios para usos recreativos ou comerciais. Esse modelo foi adotado posteriormente pelo Canadá, onde os rituais religiosos também ocorrem de forma ordeira e segura, refletindo o mesmo compromisso com a liberdade religiosa e o bem-estar dos praticantes.
No entanto, o cenário é bem diferente em alguns países europeus, onde a União do Vegetal – que reúne cerca de 23 mil membros de mais de 60 nacionalidades e realiza o seu trabalho religioso em 11 países – tem enfrentado discriminação, sendo impedida de comungar seu sacramento e até mesmo de se registrar como organização religiosa, em afronta a diversos tratados internacionais de direitos humanos. Conforme destaquei em minha exposição, se, atualmente, existem pessoas que fazem um uso recreativo e inadequado da ayahuasca, é fundamental separar o joio do trigo e não penalizar uma confissão religiosa séria, que tem um histórico idôneo de mais de seis décadas, embaraçando o livre exercício do direito à liberdade de culto. Especialmente quando já existem dois modelos bem-sucedidos de acomodação religiosa, como demonstrado.
O Fórum Inter-religioso do G20 oferece uma oportunidade única para trocar ideias e experiências, visando construir soluções que respeitem a diversidade religiosa e garantem a liberdade de culto. A regulamentação brasileira e o modelo de acordos individuais adotado pelos EUA e Canadá são exemplos de como a legislação pode proteger tanto a liberdade religiosa quanto a saúde e ordem públicas, servindo de inspiração para uma abordagem global que valorize e respeite as práticas religiosas ao redor do mundo.
André Fagundes é doutorando em Direito Público, mestre em Direito Constitucional, e investigador colaborador do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). É também professor na pós-graduação em Direito Religioso na UniEvangélica/IBDR e pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (Cedire).
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