Resolução do Ministério da Justiça impõe uma série de obstáculos à ação das igrejas dentro das prisões e cria desigualdade entre confissões religiosas.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney
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O Ministério da Justiça e Segurança Pública, em conjunto com a Secretaria Nacional de Políticas Penais e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, recentemente divulgou uma resolução com o objetivo de orientar a assistência socioespiritual e a liberdade religiosa dentro do sistema prisional. No entanto, há sérias preocupações de que essa resolução viole direitos fundamentais assegurados pela Constituição brasileira e por tratados internacionais. Apesar de haver defensores da Resolução 34, alegando que ela está em conformidade com a lei, apresentaremos evidências que sugerem o contrário.

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A malfadada resolução já começa quebrando tudo. Em seu artigo 1.º, inciso II, veda um dos direitos mais importantes decorrentes da liberdade religiosa: o proselitismo. O proselitismo religioso, além de ser um direito fundamental, é parte integrante do núcleo essencial da liberdade religiosa. Como ensinamos em nossa obra Liberdade Religiosa: fundamentos teóricos para proteção e exercício da crença, o “direito ao proselitismo é um elemento caracterizador essencial das maiores religiões, inclusive fundamenta o direito de ‘mudar de religião’, assegurado em todos os tratados internacionais que falam sobre o tema. A título exemplificativo, observa-se que, para o cristianismo, as Testemunhas de Jeová e a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons), o proselitismo é imperativo, trata-se de uma ordem, um mandamento decorrente de seus livros sagrados” (p. 126).

Leiam vocês mesmos o que diz a resolução: “Art. 1.º (...) II – será assegurada a atuação de diferentes grupos religiosos em igualdade de condições, majoritárias ou minoritárias, vedado o proselitismo religioso e qualquer forma de discriminação, de estigmatização e de racismo religioso” (grifo nosso). Este dispositivo viola diretamente o direito fundamental à liberdade religiosa ao proibir o proselitismo. Além disso, a redação deficiente do texto pode dar margem ao entendimento equivocado de que o proselitismo é considerado uma forma de discriminação, especialmente ao utilizar a expressão “e qualquer forma” imediatamente após a proibição do proselitismo.

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Reiteramos que o proselitismo é essencial para manter a vitalidade religiosa, decorrente dos próprios dogmas e imperativos internos de cada fé. Proibir o direito ao proselitismo é uma interferência direta no cerne da religião; é dizer a um fiel que ele não deve seguir o que é mais sagrado para ele. É pedir a um cristão que ignore o mandamento de Cristo, expresso no “ide” ordenado pelo próprio Deus Filho: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16,15).

Resolução do Ministério da Justiça viola diretamente o direito fundamental à liberdade religiosa ao proibir o proselitismo nas prisões

O próximo descalabro está no artigo 4.º, incisos I, V e IX. Vejamos o primeiro desses incisos: “Art. 4.º É vedada: I – a participação de servidor público empregado privado ou profissional liberal como voluntário religioso nos espaços de privação de liberdade em que tenha atuação profissional direta”. Este inciso viola o direito fundamental de cada indivíduo, independentemente de ser servidor público ou prestador de serviços ao Estado, de possuir e praticar sua crença religiosa. A religiosidade é intrínseca à identidade de quem se identifica como religioso. Portanto, proibir um servidor ou prestador de serviços de exercer seu direito à assistência religiosa constitui uma clara violação à liberdade de crença e ao seu exercício.

É claro que, durante o horário de trabalho e enquanto estiver desempenhando suas funções como agente do Estado, o servidor ou prestador de serviços não pode realizar atividades religiosas, pois é remunerado para executar suas obrigações profissionais. Além disso, a separação entre Estado e religião, preconizada pela nossa laicidade, impede que sua atuação se confunda com a do Estado. No entanto, fora de seu expediente de trabalho, tanto a lei quanto a Constituição brasileira permitem que o servidor ou prestador de serviços exerça sua liberdade religiosa, inclusive em locais como prisões, desde que isso não interfira em suas responsabilidades profissionais.

Sigamos adiante: “Art. 4.º É vedada: (...) V – a suspensão do ingresso de representantes religiosos/as por motivos vinculados à expressão de sua religião ou ao viés humanitário da assistência socioespiritual, estando a discriminação sujeita à responsabilização pela Lei 13.869/2019 e, no que tange às religiões de matrizes africanas, aos crimes previstos na Lei 7.716/1989”. Surpreso? Eu também. Desde quando a Lei 7.716/1989 se tornou exclusiva para as religiões de matriz africana? Desde quando o Brasil se transformou em um Estado confessional de matriz afro? Não estamos em um país laico? Este dispositivo não só viola abertamente o princípio da isonomia, como também contradiz a característica fundamental da laicidade brasileira, que é tratar todas as religiões com igualdade. Nenhuma fé deve receber benefícios em detrimento de outra. No Brasil, todas as religiões merecem o mesmo tratamento benevolente e positivo por parte do Estado, e não apenas algumas selecionadas.

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Este comando proíbe a suspensão do acesso de líderes religiosos aos presídios, o que é acertado. No entanto, incorre em erro ao estipular que a responsabilidade por práticas discriminatórias e penas da Lei 7.716/1989 se aplica exclusivamente quando a discriminação é dirigida às religiões de matriz africana. O artigo 20 da mesma lei é claro: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Isso significa que discriminar uma religião é crime, não importa qual seja. Mais um dispositivo da Resolução 34, portanto, que desafia a Constituição brasileira e a própria Lei 7.716/1989.

Por último, o inciso IX do artigo 4.º proíbe “a comercialização de itens religiosos ou o pagamento de contribuições religiosas das pessoas privadas de liberdade às instituições religiosas nos espaços de privação de liberdade”. Esse dispositivo viola as liberdades religiosas do indivíduo segregado, que tem o direito de adquirir itens religiosos essenciais para sua prática religiosa, desde que não comprometam a segurança na prisão. Aplicar o princípio da “acomodação razoável” é fundamental para garantir que seus direitos sejam preservados, com a colaboração da assistência religiosa e das autoridades prisionais para evitar riscos à segurança.

Além disso, a proibição de contribuições religiosas é outra violação. Além de infringir o direito das organizações religiosas de recebê-las, viola especialmente o direito do fiel de fazê-las. A contribuição muitas vezes é um ato religioso revestido de sacralidade para o fiel; sua proibição é uma afronta ao seu foro interno, que, segundo o artigo 5.º, VI da Constituição Federal, é inviolável.

Continuando o caminho de inconstitucionalidades da Resolução 34, está o artigo 12 e seu parágrafo terceiro:

“Art. 12. As instituições religiosas que desejem prestar assistência socioespiritual e humanitária às pessoas presas deverão ser legalmente constituídas, por pelo menos 1 (um) ano, resguardadas as exceções previstas no § 3.º deste artigo.
(...) § 3.º As religiões de tradição oral, dentre elas as matrizes africanas e as religiões dos povos originários, bem como outros segmentos análogos, quando não possuidores dos documentos a que se refere o inciso b) do § 2.º do presente artigo, poderão comprovar sua constituição e regularidade por meio de declaração prestada pelo representante religioso, mediante formulário próprio, cabendo à administração, caso julgue necessário, a verificação in loco dos dados fornecidos.”

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Como pode haver um prazo mínimo de um ano de existência para que uma instituição religiosa possa oferecer assistência religiosa? Essa previsão não só viola os incisos VI, VII e VIII do artigo 5.º da Constituição, como também contradiz o artigo 19, I, da Carta Magna, que proíbe qualquer entidade de criar obstáculos para as igrejas e cultos religiosos. A Constituição é clara ao proibir qualquer tipo de embaraço ao funcionamento das igrejas, e o estabelecimento de um período mínimo para o exercício de seus direitos constitucionais, como a assistência religiosa, constitui, sem dúvida, um tipo de embaraço.

O atual governo está abandonando o Estado laico existente no Brasil para, ao arrepio da Constituição, criar um Estado confessional de matriz afro, pois não é a primeira vez que age desta maneira

Além disso, esse dispositivo também entra em conflito com o artigo 44, §1.º, do Código Civil brasileiro, que assegura o livre funcionamento das organizações religiosas, proibindo qualquer interferência em sua estrutura e atividades: “As organizações religiosas têm liberdade para criar, organizar, estruturar-se internamente e funcionar, sendo vedado ao poder público negar-lhes o reconhecimento ou registro dos atos constitutivos necessários para seu funcionamento”.

Por fim, o artigo 12 da resolução cria uma exceção: todas as organizações religiosas precisam ter o lapso de um ano de existência, menos as de matriz africana. Exceção esta sem motivação jurídica razoável, e que fere a característica da igual consideração da laicidade brasileira e o princípio da isonomia, previsto no artigo 5.º, caput, da Constituição. É algo que seria possível apenas se o Brasil fosse um Estado confessional de matriz africana.

Terminado a estrada da inconstitucionalidade, seguimos para o artigo 14 – ah, o artigo 14... chega a ser surreal: “São requisitos indispensáveis ao credenciamento do agente voluntário: (...) II – não possuir familiares ou parentes de até segundo grau presos na unidade prisional na qual pretenda realizar a atividade religiosa; (...) IV – ser maior de 18 anos e residente no país”.

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Este artigo define os requisitos para o credenciamento de agentes voluntários, incluindo aqueles que buscam exercer o direito constitucional à assistência religiosa. Um dos requisitos, conforme o segundo inciso, é que o candidato não tenha familiares até o segundo grau presos na unidade prisional onde deseja atuar. Além disso, o quarto inciso estipula que o candidato deve residir no país. Quer dizer que, se um jovem estiver preso, seu pai não pode participar como voluntário de um ritual religioso? Isso não parece razoável, especialmente considerando o que diz a Constituição brasileira no artigo 227, que afirma ser dever da família, da sociedade e do Estado garantir, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, educação e convivência familiar dos jovens, além de protegê-los de toda forma de negligência e discriminação.

Quanto à exigência de residir no país, a Constituição, no artigo 5.º, caput, afirma que todos, brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil, têm direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Residir não implica necessariamente ter domicílio. Basta estar no Brasil para receber proteção constitucional. Portanto, a Resolução 34 não pode exigir que um ministro de culto tenha autorização de residência ou domicílio no Brasil para realizar um culto em um presídio, por exemplo.

Parece-nos que o atual governo está abandonando o Estado laico existente no Brasil para, ao arrepio da Constituição, criar um Estado confessional de matriz afro, pois não é a primeira vez que age desta maneira, como bem demonstra o caso da Resolução 715 do CNS, que comentamos aqui. A laicidade é uma conquista de que não vamos abrir mão.

Essa resolução está mesmo “redonda”, como dizem, ou está cheia de violações? Ao restringir direitos como o proselitismo religioso e impor requisitos impraticáveis para o credenciamento de agentes voluntários, ela não apenas viola garantias constitucionais, mas também ignora a complexidade das relações familiares e a própria natureza da liberdade religiosa. Essas violações criam obstáculos à assistência socioespiritual e à liberdade religiosa dos indivíduos encarcerados. E você, o que pensa sobre isso? Compartilhe nos comentários e não deixe de ler aqui um parecer completo sobre a tal resolução, elaborado pelo IBDR.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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