Cresci ouvindo que havia dois tipos de “dores”: a dor do corpo, provocada seja por doenças ou acidentes, e a dor da alma. O primeiro tipo deveria ser tratado com remédios; o segundo, com terapia.
Também fui criado em um ambiente diferente da maioria. Meu pai, reverendo Vilson Regina, é um pastor evangélico, há quase 50 anos, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Seu ministério pastoral foi marcado por uma ênfase especial: a poimênica. Este é um termo grego (vem de poimén, “pastor”) e está justamente ligado à figura bíblica de Jesus Cristo, o Bom Pastor (conforme o relato do Evangelho segundo João, capítulo 10,14-15):
“Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece, e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas.” (versão Nova Almeida Atualizada).
Foi inclusive esta figura de linguagem usada por Jesus que determinou o ofício daqueles que seriam separados para o serviço da instituição por Ele criada, a Igreja: foram tanto designados como “pescadores de homens” quanto de “pastores”. Não foi outra a comissão de Jesus a Pedro após sua ressurreição (há poucos dias celebrada), quando pede a ele que “apascente meus cordeiros” (João 21,15, NAA).
O aconselhamento é prática milenar, e acompanha toda a história da Igreja. Mas não trata qualquer mal. Há limites que devem separar o gabinete pastoral e o encaminhamento para o setting terapêutico
Este pastoreio se dá de maneira especial no chamado “aconselhamento pastoral”. Aqui o pastor (antigamente chamado de “cura d’almas”!) ouve, pondera, ora junto e aconselha os fiéis que lhe chegam com dores da alma. O aconselhamento é prática milenar, e acompanha toda a história da Igreja. Mas não trata qualquer mal. Há limites que devem separar o gabinete pastoral e o encaminhamento para o setting terapêutico.
A ciência da saúde mental tem se desenvolvido muito rapidamente nos últimos anos. A psicologia, como é sabido, fundamentou-se há pouco como um saber técnico, e, com justiça, tem seu lugar na prática científica. É, no dizer popular, aquela ciência que trata as dores da alma.
Meu pai, portanto, ministro de confissão religiosa, resolveu agregar à sua teologia e prática pastoral da poimênica o saber científico da psicologia. Formou-se há dez anos e tem – com o testemunho de muitos – ajudado muitas vidas, assim como milhares de outros pastores, sacerdotes, padres e ministros de inúmeras confissões religiosas pelo Brasil. Resolveu, mesmo com críticas, adotar também a psicanálise como arena de atuação – até inspirado pelo diálogo profícuo de Freud com o pastor luterano suíço Oskar Pfister entre 1909 e 1939 –, sendo este um dos primeiros pastores a adotarem a psicanálise em linha com a poimênica.
Pois, mesmo em uma sociedade profundamente religiosa, com quase esmagadores 80% de uma população professando diferentes tradições da fé cristã – o que representa incríveis 191 milhões de pessoas –, o Conselho Federal de Psicologia acordou mal-humorado e, em um canetaço, resolveu decepar a alma de qualquer psicólogo ou psicóloga que professe a fé. Editou a Resolução 7, de 6 de abril de 2023, publicada no Diário Oficial da União no último dia 18 de abril, em que “estabelece normas para o exercício profissional em relação ao caráter laico da prática psicológica”.
Em seu artigo 3º, a Resolução afirma:
“Art. 3º É vedado à psicóloga e ao psicólogo, nos termos desta Resolução e do Código de Ética Profissional: (...)
V – utilizar o título de psicóloga ou psicólogo associado a vertentes religiosas;
VI – associar conceitos, métodos e técnicas da ciência psicológica a crenças religiosas;
VIII – exercer qualquer ação que promova fundamentalismos religiosos e resulte em racismo, LGBTI+fobia, sexismo, xenofobia, capacitismo ou quaisquer outras formas de violação de direitos;
IX – utilizar, como forma de publicidade e propaganda, suas crenças religiosas.”
Tais vedações violam diversos tratados internacionais que o Brasil é signatário. Entre eles, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCIP), o Pacto de São José da Costa Rica, bem como a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, proclamada pela Assembleia Geral da ONU. Reza o PIDCIP, também reproduzido no artigo 12 do Pacto de São José da Costa Rica:
“ARTIGO 18
1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha.”
No Brasil, a liberdade religiosa é assegurada em diversos artigos de sua Constituição, tendo como núcleo os incisos VI, VII e VIII do artigo 5.º, que estabelecem:
“VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”
Ora, a crença no Brasil é inviolável e ninguém poderá ser privado de direitos por motivos de crença religiosa, inclusive os psicólogos que as manifestarem em seus consultórios, ou qualquer lugar. As vedações do CFP destroem os direitos mais íntimos de qualquer ser humano: crer e divulgar sua fé.
Imagine a situação hipotética de um psicólogo não poder prestar atendimento com um escapulário ou crucifixo no pescoço!! Tal resolução afronta o Estado laico brasileiro ao interferir na fé de milhares de brasileiros e brasileiras que são psicólogos e possuem uma crença. Aliás, o princípio mais básico de qualquer laicidade do mundo é o da não interferência!
O Conselho Federal de Psicologia, em vez de estar preocupado com cuidar das dores da alma, está a decepá-las com o uso da Nova Guilhotina
E quanto ao inciso VIII da resolução do CFP, que trata de “ação que promova fundamentalismos religiosos e resulte em (...) LGBTI+fobia”? O que seria LGBTI+fobia se a ADO 26 deixou claríssimo em seu dispositivo constitucional que não é crime de homotransfobia qualquer discurso oral ou escrito com base em dogma/crença? Diz a ADO 26, julgada no STF:
“A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, (...), independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.”
Não existe outra forma de dizer isto: o Conselho Federal de Psicologia, em vez de estar preocupado com cuidar das dores da alma, está a decepá-las com o uso da Nova Guilhotina. Autoridades e sociedade: o preço da liberdade foi, é e sempre será a eterna vigilância!
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