Introdução
Recentemente, uma decisão do Tribunal de Justiça da Paraíba declarou inconstitucional a leitura de texto bíblico em sessões da Câmara de Vereadores de Campina Grande. A ação movida pelo Ministério Público alegou que a prática viola o princípio da laicidade do Estado e a liberdade religiosa. O relator do caso entendeu que a leitura bíblica era uma forma de favorecimento de uma religião em prejuízo das demais, e que não tinha relação com o exercício da função legislativa.
A laicidade do Estado é um princípio fundamental em uma sociedade democrática, garantindo a separação entre igreja e Estado, e a liberdade religiosa. Em qualquer Estado laico do mundo, estes são os princípios básicos. No entanto, a discussão sobre a leitura da Bíblia nas casas legislativas tem gerado controvérsias, levantando questionamentos sobre a possível violação da laicidade. De pronto, afirmamos: a leitura bíblica nas casas legislativas não viola a laicidade do Estado, desde que seja realizada de forma simbólica e respeitando a diversidade religiosa.
O princípio do Estado laico assegura a separação entre igreja e Estado e garante a liberdade de crença, religião e culto a todos os cidadãos. Em um Estado laico não pode acontecer interferência eclesiástica nas decisões políticas, bem como a ingerência estatal nos assuntos de fé, garantindo a igualdade de tratamento a todas as religiões, inclusive aqueles que não têm fé alguma.
A cultura e a identidade histórica do Brasil foram fortemente marcadas pelo cristianismo. A Bíblia é o livro sagrado da maioria dos brasileiros e faz parte do patrimônio cultural do país
O cristianismo enquanto manifestação cultural no Estado brasileiro
A leitura bíblica nas casas legislativas pode ser compreendida como uma manifestação cultural e histórica, uma vez que a Bíblia é um livro de grande importância para a formação da sociedade ocidental, sendo o livro mais lido de todos os tempos. Neste sentido, a prática pode ser vista como um ato simbólico, que não implica, necessariamente, em uma imposição religiosa.
É sabido que a cultura e a identidade histórica do Brasil foram fortemente marcadas pelo cristianismo. Destarte, a Bíblia é o livro sagrado da maioria dos brasileiros e faz parte do patrimônio cultural do país. Da bandeira nacional, ostentando em seu centro a cruz de Cristo, aos feriados religiosos e nomes de cidades, o cristianismo está em todo o Brasil.
O próprio uso de crucifixos e imagens de santos em repartições públicas, como tribunais, escolas e hospitais, é uma expressão tradicional de uma nação que teve como primeiro nome “Terra de Vera Cruz”. Por essa razão, o Conselho Nacional de Justiça firmou entendimento no sentido de que o uso de símbolos religiosos em órgãos da Justiça não fere o princípio de laicidade do Estado.
Ademais, podemos destacar diversos outros elementos religiosos presentes na institucionalidade do Estado brasileiro.
Primeiramente, a própria Constituição brasileira de 1988, a Lei Maior e Fundante do nosso país, foi promulgada “sob a proteção de Deus”, o que significa um reconhecimento elevado da importância da fé na vida pública. Ainda podemos destacar a presença de capelas e capelães em instituições militares, penitenciárias e universitárias; a realização de cerimônias religiosas em datas comemorativas, como o Natal, a Páscoa e o dia de Finados; a inclusão do ensino religioso confessional nas escolas públicas, como disciplina facultativa e respeitando a diversidade de crenças; a existência de feriados nacionais e municipais relacionados a eventos ou personalidades religiosas, como o dia de Nossa Senhora Aparecida, o dia de Corpus Christi e o dia de São Jorge; a expressão “Deus seja louvado” nas cédulas de real, entre diversas outras manifestações.
Neste sentido, é impossível ofuscar a manifestação do cristianismo do imaginário brasileiro.
Portanto, uma simples leitura bíblica não viola a laicidade do Estado, pois esta não implica a exclusão da religião da esfera pública, mas sim a garantia de que todas as crenças sejam respeitadas e possam se manifestar livremente, ainda mais em uma laicidade colaborativa como a brasileira, explicada em nossa obra A Laicidade Colaborativa Brasileira: da aurora da civilização à Constituição brasileira de 1988. Logo, a leitura da Bíblia é apenas uma forma de expressão da fé dos parlamentares e dos cidadãos que a compartilham.
Sendo assim, é uma prática que não interfere nas decisões legislativas, visto que os parlamentares, das mais diferentes ideologias, religiões e visões de mundo, devem seguir as normas constitucionais e legais, independentemente de suas crenças. Logo, tais momentos são apenas de reflexão e de inspiração para os trabalhos legislativos, não constituindo um culto religioso ou um Estado confessional.
Entretanto, para que a leitura de textos sagrados nas casas legislativas não viole a laicidade do Estado, é fundamental que seja realizada de forma inclusiva e respeitando a diversidade religiosa. Isso significa que outras religiões também devem ter espaço para manifestar suas crenças e tradições, de modo a garantir a igualdade de tratamento a todos os grupos religiosos, isto porque nossa laicidade possui uma característica muito importante, a da igual consideração a todos os credos e religiões.
A leitura da Bíblia nas sessões pode ser compreendida como uma manifestação cultural e histórica, sem implicar em uma imposição religiosa
Cabe ressaltar, contudo, que a leitura bíblica nas casas legislativas não deve ser interpretada como uma interferência direta de uma religião específica no Estado. Afinal, a separação entre Estado e igreja é um princípio fundamental da laicidade, e a leitura da Bíblia deve ser entendida como um ato simbólico, que não implica em uma imposição religiosa nas decisões políticas.
Pode o Judiciário intervir no funcionamento do Legislativo?
A decisão de um Tribunal de Justiça estadual que interfere na condução e organização dos trabalhos do Poder Legislativo municipal suscita preocupações relevantes quanto à observância do princípio da separação dos poderes, consagrado no artigo 2.º da Constituição de 1988. Neste sentido, a interferência do Judiciário nas funções legislativas pode representar uma violação deste princípio fundamental, que visa garantir a independência e harmonia entre os poderes.
Por essa razão, é preciso cautela para que o controle judicial não se converta em substituição da vontade dos legisladores (representantes eleitos democraticamente pelo povo), sob pena de comprometer o equilíbrio democrático.
Considerações finais
Podemos concluir que a leitura bíblica nas casas legislativas não viola a laicidade do Estado, ainda mais em uma laicidade colaborativa como a brasileira. Importante frisar que a leitura deve ser realizada de forma simbólica e respeitando a diversidade religiosa, porquanto é fundamental garantir a igualdade de tratamento a todas as religiões e assegurar a separação entre Estado e igreja.
As decisões judiciais que proíbem a leitura das Escrituras nas câmaras municipais ao redor do Brasil nada mais são que uma indevida limitação à liberdade de expressão dos parlamentares, bem como uma interferência nas competências do parlamento, afrontando a separação constitucional dos poderes e o próprio Estado laico. Laicidade é não interferência, exatamente o oposto do que o TJ-PB fez no caso de Campina Grande.
Portanto, a leitura da Bíblia nas sessões pode ser compreendida como uma manifestação cultural e histórica, sem implicar em uma imposição religiosa, de maneira que é possível conciliar a cultura, a tradição e a diversidade religiosa com os princípios do Estado laico.
Por fim, não podemos esquecer que nos Estados Unidos – cujo Estado laico não é tão benevolente e colaborativo com a religião como o nosso – as autoridades públicas, inclusive o presidente da república, juram com a mão sobre a Bíblia, e a Bíblia é o livro mais citado de seu Congresso! Enquanto isso, aqui, no Brasil, o pessoal quer esconder a Bíblia...
(O nosso leitor que tiver mais interesse em aprofundar a matéria pode acessar o excelente parecer emitido pelo IBDR, em caso semelhante.)
Coluna escrita com a colaboração de Rafael Durand Couto, advogado, professor de Direito na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) e ouvidor da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PB.
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