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Crônicas de um Estado laico

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Eleições

Uma carta para quais evangélicos?

Evangélicos em encontro com Lula, em São Gonçalo (RJ), no mês de setembro
Evangélicos em encontro com Lula, em São Gonçalo (RJ), no mês de setembro. (Foto: EFE/André Coelho)

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Nesta reta final da campanha, o todo-poderoso Lula finalmente deixou que lançassem a tal “Carta aos Evangélicos”, lida pelo “padreco do Planalto” Gilberto Carvalho (este era seu apelido internamente entre os colegas na administração petista, por ser um ex-seminarista católico), que fazia a articulação entre o governo e os movimentos sociais ligados a igrejas no período do PT no poder.

Algumas fontes dizem que o ex-presidente resistia a lançar a carta, até para manter uma coerência no discurso de “não misturar política e religião” – uma tentativa fracassada neste ano, pois o tema e os eleitores religiosos vieram com força ao debate público. Talvez este seja um dos grandes tabus vencidos, à medida que o tabu judicial da censura se torna a grande chaga deste pleito. Assim como Nero, os poderosos incendeiam Roma e acabam colocando a culpa nos cristãos.

Porém, da leitura da arta, a pergunta que fica é: para quais evangélicos exatamente este documento foi endereçado?

A impressão que se tem é, mais uma vez, de absoluto desconhecimento da equipe petista sobre a natureza, os valores e as preocupações da população desta tradição cristã. Lembremos que o país tinha 22% de evangélicos em 2010, segundo dados do IBGE; atualmente esta parcela parece ser superior a 30%. Deste porcentual, uma maioria mais que absoluta está no campo pentecostal e neopentecostal, deixando as denominações históricas com um número mais modesto. Do universo evangélico, podemos dizer sem medo de errar que os de visão “progressista” representam menos de 5% do total de evangélicos no Brasil.

A impressão que se tem é, mais uma vez, de absoluto desconhecimento da equipe petista sobre a natureza, os valores e as preocupações da população evangélica

A afirmação segundo a qual foi o governo Lula que legou a liberdade religiosa no Brasil através de decretos e leis é uma inverdade: na verdade, foi o Congresso Nacional. Após a aprovação do novo Código Civil, que deixava as instituições religiosas com o formato jurídico – e as obrigações e limitações – de um clube, a sociedade civil se organizou para a aprovação da Lei 10.825/2003, que acrescentou o inciso IV ao artigo 44 do Código, criando as organizações religiosas. Lula nada mais fez que sancionar o texto aprovado no Congresso.

Lula também diz ter sido ele a cuidar dos pobres, como se a responsabilidade final pelo cuidado do quarteto vulnerável (o órfão, a viúva, o estrangeiro e o necessitado) fosse de um ente despersonalizado – o Estado – e não de todos e cada um. O povo evangélico, assim como o católico, vive de acordo com a Lei do Amor, pela qual sua fé se torna ativa pelo serviço ao seu próximo, que é objeto do seu chamado pelo próprio Deus. O governo tem a missão de fazer justiça – entendida como o refrear do mal, por sua vez entendido como algo inato à natureza humana –, produzindo processos sociais que permitam a todos buscar o bem comum. Não é função do Estado produzir resultados comuns, gerando distorções e uma igualdade fictícia, não sustentável, e que normalmente conduz a uma condição de pobreza comum.

Quanto ao “risco ao funcionamento das igrejas”, basta buscar nas várias cidades espalhadas pelo país qual é o partido que sempre busca regular, dificultar, embaraçar ou até barrar o funcionamento de templos. O Plano Nacional de Direitos Humanos 3 previa, em seu texto original, a regulação da mídia (religiosa, inclusive), o fim dos símbolos religiosos em prédios públicos e o aborto, depois suavizado pelo presidente, que passou do apoio expresso para tratá-lo como “caso de saúde pública”, postura que mantém até hoje.

Basta lembrar os projetos que culminaram no famigerado PLC 122, o grande marco que gerou o despertar dos evangélicos quanto aos perigos da política sem a sua influência. Ainda antes de o PT ser governo, seu texto original, defendido pela bancada petista, previa o fechamento de igrejas por uma postura homofóbica – entendendo ser “homofobia” a expressão do conjunto de doutrina e teologia com a qual se aproximam das Escrituras.

Ninguém está com medo de ter sua igreja simplesmente fechada em 2 de janeiro de 2023. Tampouco teme-se que Lula revogue a Marcha para Jesus ou o Dia do Evangélico. O que realmente assusta este povo – crescente e que trabalha, empreende, paga impostos bem caros e tem historicamente poucas expectativas quanto às instituições da política – são outras coisas.

A liberdade religiosa, assim como a de crença, é cláusula pétrea na Constituição. Porém, embora nossa laicidade colaborativa seja a mais avançada do mundo formalmente, isso não nos ajuda muito na prática. Conforme o Pew Research Institute, que tem índice de exercício da liberdade religiosa em todo o mundo, nós caímos, em um ranking de 168 países, da posição 41 para 128 em apenas dois anos: os da pandemia. E de quem foram os governos que, entre as medidas seriamente questionáveis de gestão, foram radicais quanto às igrejas? Acertou, leitor: os de esquerda!

Caso Lula fosse realmente contrário ao aborto, deveria dizer claramente que vetaria qualquer lei aprovada a respeito do tema, que impediria seu partido ou coalizão de fazer tal propositura, e que é contrário à ADPF 442. Mas não fez nada disso

Foi neste contexto que Ciro Gomes disse que iria mandar prender pastores e padres; que João Doria determinou o fechamento absoluto dos templos (o que foi mantido pelo Supremo Tribunal Federal); que governadores de norte a sul mostraram suas garras para tomarem nacos de liberdade a pretexto de cuidarem justamente delas. E Lula, grande figura pública, que estava sendo reabilitado publicamente, o que falou? Nada. Nenhuma palavra de apoio aos que buscavam na igreja o necessário e essencial auxílio espiritual.

Foi ainda no início da campanha que Lula avisou que não governaria para nenhuma “facção religiosa”, com toda a carga pejorativa que esta palavra enseja. Não, senhores, não existem palavras inúteis na política. Elas expressam o que dizem, e quase sempre codificam para os iniciados as verdadeiras intenções.

Quanto ao aborto, Lula disse em sua carta que sua aprovação não era papel da Presidência e que, pessoalmente, era contra o aborto. A proteção da vida é uma obrigação estrutural do Estado, pois a dignidade humana é o ponto de convergência de toda a Constituição. Assim, em primeiro lugar, é algo que não depende de opinião: é uma vertical objetiva e, como presidente da República, proteger a vida é seu dever. Em segundo lugar, caso Lula fosse realmente contrário, deveria sinalizar isso de maneira clara em seu discurso, dizendo que vetaria qualquer lei aprovada pelo Legislativo a respeito do tema; prometendo não permitir que seu partido ou coalizão fizessem tal propositura; e colocando-se, desde já, terminantemente contra a ADPF 442, que tramita no STF (e que tem dois ministros novos chegando em 2023, indicados pelo novo presidente) e busca a liberação do aborto até o terceiro mês de gestação.

Pelo contrário: foi em seu governo que o Ministério da Saúde permitiu que o aborto fosse administrado em caso de aviso de estupro sem sequer um boletim de ocorrência – o que ficou ainda mais fortalecido com a pandemia, criando-se o “teleaborto”, com denúncias pelo telefone e remédios enviados pelo correio –, com o dinheiro do evangélico pró-vida pagador de impostos.

Por fim, ainda faltou ao presidente deixar claro que sua influência junto ao Ministério Público seria no sentido de não haver perseguição a pastores e líderes que se manifestam quanto a temas sensíveis (como a sexualidade) do ponto de vista doutrinário e que são hoje perseguidos e processados; ou acadêmicos que são absolutamente caçados como presas nas universidades quando – vejam vocês – expõem uma ideia diferente da militância (recentemente vimos uma estudante de História fortemente hostilizada por colegas por ser conservadora).

Sim, senhores. O temor do evangélico é de poder continuar a “crer, e por isso, falar”. Todos sabem que o chamado à fé nos coloca em um caminho árido. Porém a liberdade parece um mero conceito abstrato, até que a perseguição bate às portas. E está batendo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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