O artigo 19, I da Constituição brasileira foi revogado; e, no artigo 5.º, VI, onde se lia “inviolável” leia-se agora “violável”. É isso mesmo: não temos mais liberdade de crença, muito menos Estado laico no Brasil. Acabou! Está inaugurado o Estado teocrático LGBTQI+. Pelo menos é a vontade de alguns e, salvo se corrigida nas instâncias superiores, até do Judiciário do Distrito Federal.
Em 2 de junho do 2.023.º ano do nascimento de Jesus Cristo, a juíza de Direito da 4.ª Vara Cível de Taguatinga, no Processo 0708412-98.2023.8.07.0001, pasmem, em sede liminar, diz que um pastor evangélico não pode falar em pecado e inferno no púlpito de uma igreja. Vejam o absurdo jurídico, caros leitores:
Segundo a juíza, falar que determinada prática é pecado e resulta no inferno é discriminatório, degrada, inferioriza, subjuga, leva a intolerância ou discriminação, e por isso pode ser considerado crime. Em suma, o cidadão brasileiro não tem mais liberdade religiosa para falar de suas crenças? Não se pode mais falar em pecado? Vale lembrar que a Bíblia diz que o salário do pecado é a morte e o dom gratuito de Deus é a vida eterna, como está em Romanos 6,23. E não fiquemos apenas nos pastores: os padres também acreditam em inferno e pecado, e possuem visão semelhante quanto à ética sexual e homossexualidade, assim como os muçulmanos e judeus.
No regime do Talibã, não se pode falar em nenhuma outra divindade que não a seguida pelo grupo islâmico. Aqui, estamos indo mais fundo: todas as religiões estão a caminho de serem caladas se prevalecer essa decisão, mais fundamentalista que o próprio Talibã.
O cidadão brasileiro não tem mais liberdade religiosa para falar de suas crenças? Não se pode mais falar em pecado?
Particularmente, não apreciamos a forma de abordagem do pastor objeto da medida judicial. Ele poderia mencionar outros pecados que também levam ao inferno, como a mentira, a fofoca, o adultério e a corrupção. Todavia, essa é a nossa visão do cristianismo; além disso, é a pregação dele; do ponto de vista da Constituição Federal, nossa posição não é melhor nem pior que a do pastor. Nem como cristãos e muito menos como professores de Direito, nós temos legitimidade ou autoridade para validar o que seria o “espírito cristão” ou a forma correta de exercer essa fé.
O versículo bíblico que citamos, de per se, desmonta qualquer argumento segundo o qual falar em pecado e inferno resulta em discriminação, degradação, inferiorização ou subjugação do outro. A pessoa religiosa fala em pecado e inferno exatamente porque não quer que as pessoas que praticam determinado ato classificado por sua crença como pecado (como o ato homossexual para a grande maioria dos cristãos) acabem no inferno. Um pastor ou qualquer fiel, quando diz que a prática homossexual resulta no inferno, deseja exatamente o contrário: que as pessoas recebam o dom gratuito de Deus que é a vida eterna!
Mais: mesmo que não fosse essa a intenção, trata-se de questão religiosa; qualquer um crê o que bem entender e tem o direito de se manifestar sobre sua crença, seja ela boa ou ruim, positiva ou negativa. E, anote-se, o Estado não tem o poder de dizer, no âmbito religioso, o que é “bom” ou “ruim”; só o próprio cidadão pode fazer isso. E, mesmo que algo seja tido como “ruim” pela maioria da população, isso não retira do cidadão o direito de seguir a religião que bem entender.
Outro ponto essencial é que inferno, céu, vida eterna e pecado são todos dogmas ou conceitos religiosos e de cunho espiritual. A discriminação que degrada, inferioriza ou subjuga guarda relação com atos humanos de natureza física e psíquica; para guardar relação com a natureza espiritual, teríamos de ter um juiz formado em Teologia que usasse essa teologia para dizer que certa fala de tom espiritual é ou não discriminatória! O juiz se tornaria um religioso e, como todo religioso, não pode impedir a crença distinta.
A meritíssima juíza de Direito que tachou o dogma religioso do inferno de “discriminatório” é formada em Direito. Em seu concurso público, foi aprovada por ter alcançado certo porcentual de êxito em questões relacionadas ao Direito. E, como magistrada, ela deve, no momento de julgar, usar o Direito, nunca a teologia ou suas impressões teológicas e espirituais sobre determinados dogmas. Ela é juíza de Direito no Brasil, não no Afeganistão.
A juíza de Taguatinga exerce uma função de Estado e, no exercício dessa função, fala pelo Estado. Para chegar à conclusão de que se referir ao inferno em um discurso é discriminatório, ela precisa necessariamente acreditar que céu e inferno existem. Contudo, no caso brasileiro, o Estado não é e não pode ser religioso; logo, não pode acreditar em céu e inferno; por conseguinte, não pode considerar que um discurso sobre inferno é discurso de ódio. Nenhum magistrado pode dizer que o inferno é ruim, degradante e discriminatório. Só quem pode dizer isso é um padre, pastor, rabino, babalorixá etc., todos de acordo com as suas visões doutrinárias. Isto porque o Brasil é um Estado laico e as organizações religiosas possuem total autonomia de organização, funcionamento e estruturação interna, conforme os artigos 19, I e 5.º, VI da Constituição, e o artigo 44, § 1.º do Código Civil.
Se o cristão, o muçulmano ou qualquer outro religioso não puder falar mais de inferno no Brasil, é melhor que institucionalizem a perseguição a todas as religiões, como acontece na Coreia do Norte, para que rasguem e queimem a Bíblia e o Corão em praça pública de uma vez! A situação é tão surreal que basta uma pesquisa rápida no Google para saber que a Bíblia fala 54 vezes em “inferno” e 684 vezes em “pecado”. Ou seja, ser cristão implica em ter estes dogmas. Aliás, se a moda pegar, vai ter magistrado evangélico colocando católico na cadeia, porque, afinal de contas, dizem a bula Unan Sanctam e o Concílio de Trento que “não há salvação fora da Igreja Católica Apostólica Romana” – “discurso de ódio” claro contra os evangélicos, que vão todos para o inferno... ou, então, magistrado católico colocando evangélico na cadeia, porque há evangélicos que chamam os católicos de “idólatras” e dizem que, por isso, eles vão para o inferno. Haja presídios!
O pior, o “fim da várzea”, é a juíza falar de “supostas interpretações religiosas que em grande parte também não refletem o espírito cristão”! Por que “supostas interpretações religiosas?” Como uma juíza de Direito pode afirmar em uma decisão judicial que alguma interpretação religiosa é “suposta”? Qual a base técnica, científica ou jurídica para analisar o que é, do ponto de vista religioso, “suposto” ou “verdadeiro”? Indo além, como dizer que interpretações religiosas “não refletem grande parte do espírito cristão”? O que é “espírito”? Um juiz falando de espírito? O que a interpretação de um juiz de Direito sobre inferno e pecado tem a ver com a aplicação do Direito no caso concreto? Qual a legitimidade de uma juíza para determinar qual é o “espírito cristão”? Qual o cristianismo que a magistrada tomou como referência? O católico romano, o católico ortodoxo diafisita ou miafisita, o evangélico tradicional, pentecostal, neopentecostal, calvinista, luterano, pelagianista, anabatista, arminiano? Teria essa juíza a régua medidora de qual é o cristianismo “correto”? Ao longo de 2 mil anos tivemos as maiores discussões sobre o tema, mas é de uma vara judicial de Taguatinga que finalmente sairá a certeza sobre o que é o “espírito cristão”? Será que o papa e os pastores agora deverão se consultar com a eminente magistrada para validar o teor adequado do “espírito cristão”?
Se o cristão, o muçulmano ou qualquer outro religioso não puder falar mais de inferno no Brasil, é melhor que institucionalizem a perseguição a todas as religiões
O Brasil não é laico? Vejamos o que diz o artigo 19, I da Constituição: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. A Constituição diz que é vedado a qualquer ente estatal embaraçar o funcionamento dos cultos religiosos. Querem embaraço maior que decidir que um pastor, no púlpito, não pode dizer que homossexualidade é pecado, ou que o pecador vai para o inferno?
A crença das pessoas no Brasil não é inviolável? A Constituição diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O que configura a crença e a consciência da pessoa religiosa são exatamente os dogmas, os valores morais e a teologia da religião a que ela aderiu. É notório, e já falamos diversas vezes aqui na Gazeta, que a moralidade (teologia) é elemento essencial da religião, sem o qual a religião deixa de existir.
A verdade é que cada cristão tem autonomia para definir o que entende como “espírito cristão”. Em algumas igrejas, como a Católica Apostólica Romana, quem discorda da posição da igreja deve ou pode ser retirado dela. Nos meios evangélicos, é comum que quem discorde saia do grupo e crie um novo. E todos são lícitos perante o Estado laico. A juíza, que talvez seja teóloga de uma escola minoritária do cristianismo, diz que a intepretação do pastor não reflete o espírito cristão. Bem, talvez no seminário onde ela tenha (se for o caso) se formado ou na igreja onde ela (se for o caso) seja pastora haja entendimento diverso. Se assim for, com certeza ela tem toda a liberdade para crer como quiser; mas de forma nenhuma pode afirmar que a sua interpretação é o que se coaduna com o “espírito cristão” e, pior, fazê-lo em uma decisão judicial. Isto é simplesmente uma imposição de sua visão teológica goela abaixo via decisão judicial, é usar o poder do Estado para impor uma visão religiosa, um caso de conversão forçada com uso da chancela do Estado em pleno século 21.
Curiosamente, a magistrada diz agir em nome da nome da tolerância. John Locke deve estar se remexendo no caixão, pois tolerância é exatamente o oposto disso. Vejam o que ele escreveu sobre tolerância em sua famosa Carta sobre a Tolerância: “Ademais, assim como não tem o poder de impor, mediante suas leis, ritos ou cerimônias a nenhuma Igreja, o magistrado também não pode proibir aqueles estabelecidos, aplicados e praticados por alguma Igreja, porque fazê-lo destruiria a própria Igreja, cujo propósito é o culto de Deus livremente formulado à sua maneira”.
Importante salientar que a juíza erra feio ao dizer que a afirmação do pastor não representa “o espírito cristão”. Além dos motivos já explicitados, erra feio também porque a maioria da igreja cristã no Brasil e no mundo acredita em inferno e pecado, e acredita que a prática homossexual é pecaminosa (a bem da verdade, essa poderia até ser a crença de uma minoria de cristãos, e ainda assim o Judiciário não poderia se meter nisso). Vejamos o que dizem as duas maiores igrejas cristãs do Brasil. A Assembleia de Deus, com quase 25 milhões de membros, na Declaração de Fé das Assembleias de Deus professa que:
“Cap. XXIII – Sobre o Mundo Vindouro
4. O destino dos condenados. O destino dos incrédulos é a condenação eterna no Inferno. As Escrituras Sagradas revelam que o Inferno é “o lugar preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25.41); o lugar para o qual é destinada a alma dos ímpios e de todos os que rejeitam o plano de Deus para sua salvação”.
E, quanto à homossexualidade, a mesma declaração diz:
“Cap XXIV – Sobre a família (...) Rejeitamos o comportamento pecaminoso da homossexualidade por ser condenada por Deus nas Escrituras, bem como qualquer configuração social que se denomina família, cuja existência é fundamentada em prática, união ou qualquer conduta que atenta contra a monogamia e a heterossexualidade, consoante o modelo estabelecido pelo Criador e ensinado por Jesus.”
Já a maior denominação cristã do mundo e do Brasil (quase 125 milhões de fiéis), a Igreja Católica Apostólica Romana, diz em seu Catecismo:
2357
A homossexualidade designa as relações entre homens ou mulheres, que
experimentam uma atracção sexual exclusiva ou predominante para pessoas do
mesmo sexo. Tem-se revestido de formas muito variadas, através dos séculos e
das culturas. A sua génese psíquica continua em grande parte por explicar. Apoiando-se
na Sagrada Escritura, que os apresenta como depravações graves a Tradição
sempre declarou que «os actos de homossexualidade são intrinsecamente
desordenados» (104). São contrários à lei natural, fecham o acto sexual ao
dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afectiva sexual,
não podem, em caso algum, ser aprovados. (...)
2396. Entre os pecados gravemente contrários à castidade, devem
citar-se: a masturbação, a fornicação, a pornografia e as práticas
homossexuais.
1035. A
doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As
almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a
morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, «o fogo eterno» (632). A
principal pena do inferno consiste na separação eterna de Deus, o único em Quem
o homem pode ter a vida e a felicidade para que foi criado e a que aspira.
Vamos retomar o Estado laico: pastor e padre não prolatam sentenças e juízes não dispõem sobre o céu e o inferno
Para resumir, a decisão da juíza de Taguatinga:
1. afronta o Estado Laico brasileiro, ao invadir o espaço dogmático da igreja cristã, fazendo juízo de valor de interpretações teológicas milenares sobre pecado, inferno e ética sexual e da maioria das igrejas cristãs ao seu bel sabor, como se fosse da Comissão de Doutrinas de alguma igreja;
2. cria uma espécie de Estado teocrático às avessas, ao dispor, pelo aparato estatal, como deve ser interpretado tal dogma, criando um dogma próprio, via Poder Judiciário (apenas em Estados islâmicos isso acontece atualmente);
3. embaraça o exercício da fé da maioria dos brasileiros, que a partir da notícia de sua decisão terão medo de viver sua crença, inclusive no quesito sobre ética sexual, bem como de fazer proselitismo;
4. viola o direito constitucional da liberdade de crença, previsto em todos os tratados internacionais sobre direitos humanos, ao alastrar os tentáculos do Estado no foro interno dos religiosos, que é seu âmbito mais sagrado, onde vivem seus dogmas sobre pecado, condenação e vida eterna;
5. atenta contra os direitos de liberdade religiosa – dispostos em todos os tratados de direitos humanos e na Constituição brasileira –, de expressão religiosa, proselitismo, assistência e ensino religioso e culto;
6. fuzila a liberdade institucional e de organização religiosa prevista na Constituição e no Código Civil ao dizer como as igrejas devem se organizar e interpretar seus dogmas;
7. acaba com o conceito universalmente aceito de que a religião é formada de três elementos primários, quais sejam: divindade, moralidade e culto. Isto porque cria uma moralidade pela via externa, quando a moralidade de uma religião, que é seu elemento central, deve ser criada de dentro;
8. em uma função de Estado, passa a acreditar em conceitos como céu e inferno para, a partir de tal crença, constatar que o inferno é ruim e, logo, falar sobre ele seria discurso de ódio. O Estado deixa de ser arreligioso para ser tornar religioso, criando uma confusão semântica e jurídica, no sentido de que diversos elementos e dogmas religiosos poderão ser tornar crimes de acordo com a visão teológica do julgador, gerando total insegurança jurídica para quase toda a população brasileira que se identifica como religiosa. Em suma, o religioso terá de pedir bênção e orientação religiosa ao juiz de Direito e não mais ao seu líder religioso sobre o que falar em matéria de fé;
9. desconsidera fator determinante de que ser intolerante significa exatamente interferir na fé ou modo de vida do outro, por não concordar com ele; e, principalmente, que como magistrado nunca deveria interferir em dogmas religiosos, mesmo que discorde deles. Uma coisa é ensinar que tal prática é pecado, outra (totalmente intolerante) é obrigar via decisão judicial que a pessoa se abstenha de tal prática, seja referente à ética sexual, seja referente aos seus dogmas religiosos;
10. age de forma bastante equivocada ao se considerar apta a definir o que é ou não o “espírito cristão” e invadir a seara da fé utilizando o poder estatal para impor a terceiros sua visão de mundo.
Nós já alertávamos aqui que o diabo seria cancelado e o inferno, extinto. Aconteceu na 4.ª Vara Cível de Taguatinga. Esperamos que o Tribunal de Justiça do DF corrija essa decisão teratológica (e até teológica!) o quanto antes para fazer cessar as dez afrontas acima enumeradas. Vamos retomar o Estado laico: pastor e padre não prolatam sentenças e juízes não dispõem sobre o céu e o inferno. Que Deus nos ajude e a Constituição nos proteja!
(Thiago Rafael Vieira é doutorando e mestre em Direito Político e Econômico, especialista em Direito do Estado, em Liberdade Religiosa e em Teologia, membro da Comissão Especial de Liberdade Religiosa da OAB Nacional, advogado de milhares de igrejas no Brasil e coautor, com Jean Regina, de Direito Religioso: questões práticas e teóricas. William Douglas é jurista, professor de Direito Constitucional e escritor com 68 livros publicados. É mestre em Direito e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo.)
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