Passamos a última semana na Europa para dois importantes eventos. O primeiro foi nosso primeiro curso de Direito Religioso Internacional, ministrado na Universidad Autónoma de Madrid (UAM). O segundo foi a edição 2024 de nossa Conferência Lusobrasileira de Liberdade Religiosa.
Estamos trabalhando em um intercâmbio entre a Europa Ibérica (Espanha e Portugal) e Brasil para construir uma rede de parceria em torno da liberdade religiosa e laicidade colaborativa, tradição que une nossos povos e é fundamental para o fortalecimento da verdadeira noção de democracia e ordem constitucional.
Reconhecer o direito eclesiástico é reconhecer a dignidade da pessoa humana em sua vertente espiritual no ordenamento jurídico do Estado.
Em Madrid, fomos recebidos pelo Prof. Dr. Ricardo García García, professor catedrático de Direito Eclesiástico do Estado na UAM, e líder de um grande grupo de pesquisadores e professores da área. Segue uma entrevista que fizemos com ele sobre o tema, nosso curso e o intercâmbio entre Brasil e Espanha pela liberdade religiosa. Aproveitem!
Como tem evoluído o reconhecimento e a proteção da liberdade religiosa na Espanha ao longo das últimas décadas? Existem desafios específicos que ainda precisem ser abordados nesse contexto?
A evolução desde a aprovação da constituição espanhola tem sido muito relevante. Contamos com um sistema de proteção da liberdade religiosa muito razoável, talvez um dos melhores do mundo, finalmente pondo fim à denominada "questão religiosa" como elemento de separação e confronto entre os espanhóis.
Agora, devido ao surgimento de ideologias que pretendem romper o consenso, alguns grupos políticos pretendem que a religião seja algo privado, alegando uma mal-entendida laicidade, para que a religião saia e não faça parte do espaço público. Creio que esta é realmente a questão. A colaboração ou cooperação como princípio ativo na regulamentação da liberdade religiosa é o grande desafio dos próximos anos.
Qual é o papel do direito eclesiástico do Estado na promoção e proteção da liberdade religiosa na Espanha? Como ele interage com as leis civis e constitucionais?
É realmente fundamental, é um ramo jurídico específico, capaz de integrar no ordenamento jurídico estatal os direitos das entidades religiosas, seus direitos internos ou estatutários, e de interagir em favor do direito de liberdade religiosa como um todo em sua integração em outros ramos do ordenamento jurídico positivo, especialmente com o constitucional, administrativo, penal, mas também no direito privado, especialmente no civil e nas relações de trabalho.
Reconhecer o direito eclesiástico é reconhecer a dignidade da pessoa humana em sua vertente espiritual no ordenamento jurídico do Estado.
Considerando a diversidade religiosa na Europa, como as leis e políticas europeias têm sido adaptadas para garantir a liberdade religiosa para todas as crenças? Existem exemplos de boas práticas que podem ser compartilhados?
Na verdade, é um tema que a própria UE deixou nas mãos dos diferentes países membros. Considerou-se que a religião em cada um dos países membros, e especialmente o tratamento que o direito protagonizou em cada país, é substancial, faz parte das próprias raízes de cada país. O que podemos chamar de as raízes próprias de cada país. Não se pode reconhecer um país sem conhecer sua história religiosa.
Nesse sentido, o Artigo 17 do Tratado de Funcionamento da União Europeia foi introduzido, mas a proteção da liberdade religiosa ocorre a partir das leis internas e com uma interpretação mais ou menos uniforme do Tribunal de Justiça da União Europeia (nas matérias em que as competências da UE atuam na liberdade religiosa, principalmente discriminação no âmbito laboral por motivos religiosos ou vestimenta religiosa no âmbito laboral), e pelo próprio Tribunal Europeu de Direitos Humanos, na medida em que os países da UE também fazem parte da convenção.
Dentro do que são chamadas de "tradições constitucionais comuns", existiriam elementos que nos permitem encontrar um denominador comum na proteção da liberdade religiosa, mas com elementos diversos nos diferentes países da UE que nos obrigam a fazer interpretações razoáveis para acomodar a realidade em cada país e momento. Para citar alguns exemplos, podemos mencionar os pactos em diferentes países com o status de lei com confissões religiosas menos arraigadas tradicionalmente, como Espanha e Itália com as igrejas evangélicas ou a comunidade muçulmana.
Existem muitos exemplos também relacionados ao financiamento das entidades religiosas, que, estando separadas dos Estados, não implicam que seu caráter sem fins lucrativos permita um regime fiscal favorável.
Com o aumento da secularização em muitas partes da Europa, como isso tem impactado na liberdade religiosa e nas relações entre as instituições religiosas e o Estado?
Há muitos anos se fala em secularização, e é verdade, se observarmos os dados que nos falam sobre a liberdade religiosa. Esses dados são sempre pesquisas, estatísticas, mas que apresentam apenas uma foto, um dado em um momento específico, mas é verdade que, cada vez mais na Europa e na Espanha, as pessoas tendem a não falar sobre sua religiosidade.
O religioso não tem "boa imprensa" propiciada por alguns meios de comunicação e setores políticos específicos, mas, no entanto, as pessoas cada vez mais vão às igrejas, sinagogas ou mesquitas e outros templos religiosos. A verdade é que, em algum momento de nossa vida, as pessoas têm presente a transcendência em suas diferentes formas reconhecidas ou amparadas pelo direito fundamental de liberdade religiosa.
Algumas pessoas durante toda a vida e outras em alguns momentos específicos. A pandemia da Covid-19 foi um exemplo de como as pessoas buscam a religiosidade e como, com os templos fechados devido à emergência sanitária, os programas religiosos transmitidos pela TV ou rádio tiveram audiências superiores a qualquer estreia de plataformas online ou filmes de cinema. Enfim, a obra do filósofo Gilles Kepel, A revanche de Deus, acredito que está cada vez mais atual, já que a secularização como "moda" está deixando de ser uma realidade diante da participação cada vez mais importante dos cidadãos em atos religiosos.
Em que medida as questões relacionadas à liberdade religiosa na Espanha e na Europa estão sendo influenciadas por debates e decisões a nível internacional, como os casos julgados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos? Como isso afeta a jurisprudência nacional? E, no caso do Brasil, como essas questões se comparam e que lições podem ser aprendidas?
Muito, a constituição espanhola, assim como a de muitos outros países, contempla a interpretação de nossos direitos e liberdades conforme os tratados internacionais assinados pelo Estado espanhol. Esta questão é muito importante. Assim, as sentenças do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e as do Tribunal de Justiça da União Europeia – embora estas últimas com efeito direto pelo direito comunitário –, são integradas em nosso direito interpretando nosso ordenamento jurídico. Na Espanha, é muito comum observar como um tribunal de instância – a primeira entrada na esfera processual dos supostos forenses – já cita em sua fundamentação jurídica sentenças desses órgãos judiciais.
Considerando os desafios e complexidades em torno do debate da laicidade colaborativa, qual é a importância de um curso de direito e religião em um programa de intercâmbio entre Brasil e Espanha? Como este tipo de intercâmbio pode contribuir para uma compreensão mais ampla e uma abordagem mais colaborativa da laicidade e da liberdade religiosa em ambos os países?
É fundamental, o ordenamento jurídico brasileiro pode ensinar muito ao espanhol e o espanhol muito ao brasileiro. É uma cooperação formativa perfeita, ambos os sistemas de proteção são complementares e estão sob os mesmos princípios jurídicos. Esta formação deveria ter começado há muitos anos.
Agora está em curso e a satisfação dos alunos, professores e todas as pessoas envolvidas é enorme. A verdade é que este curso tem sido uma bênção. Quero agradecer ao Instituto Brasileiro de Direito e Religião pelo esforço realizado para que este curso tenha sido uma realidade.
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