O Projeto de Lei 1.096/2019, recentemente aprovado pelo Senado e enviado para sanção presidencial, propõe uma alteração na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), criando, no artigo 442, dois parágrafos para estabelecer a inexistência de vínculo empregatício entre confissões religiosas, incluindo igrejas, instituições, ordens ou congregações, e seus ministros, pastores, presbíteros, bispos, freiras, padres, evangelistas, diáconos, anciãos, sacerdotes ou quaisquer outros que se equiparem a ministros de confissão religiosa e a integrantes de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa. Embora o projeto traga argumentos importantes, ele tem sido alvo de diferentes pontos de vista e controvérsias.
O texto aprovado inseriria os seguintes trechos na CLT:
“Art. 442 [...]
§ 2.º Não existe vínculo empregatício entre entidades religiosas de qualquer
denominação ou natureza ou instituições de ensino vocacional e ministros de
confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou
ordem religiosa, ou quaisquer outros que a eles se equiparem, ainda que se
dediquem parcial ou integralmente a atividades ligadas à administração da
entidade ou instituição a que estejam vinculados ou estejam em formação ou
treinamento.
§ 3.º O disposto no § 2.º deste artigo não se aplica em caso de desvirtuamento
da finalidade religiosa e voluntária.”
Alguns críticos do projeto veem nele uma tentativa de isentar todas as organizações religiosas de suas responsabilidades trabalhistas, o que poderia abrir margem para abusos e desvios de finalidade. Pontuam situações em que algumas igrejas ou instituições religiosas podem se aproveitar dessa mudança para explorar seus líderes espirituais sem oferecer condições justas de trabalho. Essas vozes, frequentemente alinhadas ao movimento antirreligiosidade, clamam por uma maior fiscalização e taxação de todas as igrejas como forma de evitar abusos.
O vínculo entre o líder religioso e a instituição acontece a partir de uma eleição pela congregação seguido de um convite, conhecido, por exemplo, como “chamado divino”. Sua natureza é espiritual, não contratual. Quem “contrata” é a divindade
No entanto, é importante analisar esses argumentos com cautela, pois generalizar todas as organizações religiosas pode ser injusto para aquelas que de fato operam de acordo com sua missão e princípios religiosos de forma responsável, numa clara tentativa de “jogar fora o bebê com a água do banho”.
Sabe-se, pela jurisprudência trabalhista já consolidada, além da doutrina (nós mesmos chamamos a atenção do assunto em todas as edições do nosso Direito Religioso: questões práticas e teóricas, agora indo para sua 4ª edição), que em situações de desvio de finalidade o ordenamento jurídico já possui mecanismos para responsabilizar as organizações religiosas. O artigo 16 do Acordo Brasil-Santa Sé (Decreto 7.107/2010) é citado como exemplo de uma resposta adequada nesses casos, aplicável a qualquer organização religiosa pelo princípio da isonomia constitucional.
Além disso, é crucial compreender a natureza peculiar das relações entre sacerdotes e igrejas. O vínculo entre o líder religioso e a instituição acontece a partir de uma eleição pela congregação seguido de um convite, conhecido, na maioria das tradições religiosas cristãs, por exemplo, como “chamado divino” ou “chamado espiritual”. Sua natureza é, portanto, espiritual, não contratual. Quem “contrata” é a divindade – pessoa divina que não integra relações contratuais para fins do artigo 3.º da CLT, que regula os requisitos do chamado “vínculo empregatício”: subordinação, habitualidade e remuneração.
O conceito de “múnus eclesiástico” também é relevante nesse contexto, pois abrange diferentes confissões religiosas e reflete a especificidade das relações entre líderes religiosos e suas respectivas comunidades. Ademais, os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Congresso com maioria qualificada têm equivalência a emenda constitucional, conforme disposto no artigo 5.º, §§ 2.º e 3.º da Constituição da República Federativa do Brasil. Isso reforça a necessidade de se respeitar a liberdade religiosa e a autonomia das organizações religiosas.
É essencial que esse debate seja conduzido de maneira justa e ponderada, respeitando a liberdade religiosa e a natureza peculiar das relações entre líderes religiosos e suas comunidades. O equilíbrio entre a proteção dos direitos trabalhistas e a garantia da liberdade religiosa deve ser buscado, para que as organizações religiosas possam cumprir suas missões sem deixar de lado suas responsabilidades éticas e sociais.
Esta legislação – por mais que a orientação doutrinária e jurisprudencial já apontasse neste sentido – vem reforçar o argumento de que a sociedade política brasileira protege o exercício da religião em todas as dimensões, também na institucional. A laicidade colaborativa faz que o Estado garanta o espaço efetivamente, por meio de leis. Qualquer posição diversa seria uma afronta a estes princípios, da laicidade e liberdade, em sua essência: separação entre ordem política e religiosa, e autonomia no pleno desenvolvimento institucional das diversas manifestações de fé.
À sanção presidencial, portanto.
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