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Reportagem especial – Picassos Falsos, a história de uma lenda do rock brasileiro – Parte 2
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Rui Mendes
“Supercarioca” misturou, com maestria, a MPB ao rock

“Supercarioca”, um dos clássicos do rock brasileiro

Com o primeiro disco lançado e tendo o seu nome mais reconhecido no país, o Picassos estava prestes a lançar uma pérola. O segundo trabalho da banda, “Supercarioca”, de 1988, é considerado um dos melhores da história do rock nacional. “Acho que é um disco ao mesmo tempo mais maduro e mais juvenil. Certamente mais ambicioso. Conseguimos doses certas de alguma maturidade que já tínhamos naquele longínquo ano de 88 do século passado com uma ousadia e petulância típicas da juventude”, afirma Romanholli.

O álbum apresentava um som fortemente influenciado pelo samba e pela música brasileira. Riffs pesados, insinuando Hendrix, se misturavam com as bases swingadas feitas pelos violões, dando uma cara única ao disco. “As referências eram completamente diversas. Queríamos um som mais cru, mais parecido com o que estávamos ouvindo na época, que era a música produzida nas décadas de 60 e 70. Isso acabou configurando um som anos 90”, analisa Gustavo.

Essa mistura de influências que, segundo o baixista Romanholli não era nova, ao lado do “tempero” que a banda deu, forjou definitivamente o som do Picassos. “Várias bandas, como os Novos Baianos e A Cor do Som, já tinham feito aquela mistura de rock com ritmos brasileiros. Não chegou a ser uma novidade, portanto. Acho que o que fizemos de diferente foi trazer um pouco mais de soul e funk, além do rock dos anos 80 e sons contemporâneos para a gravação do disco. E as letras, claro, todas de um nível artístico altíssimo”, explica.

Humberto Effe acredita que a musicalidade de todos os membros do Picassos aflorou neste segundo álbum. “Mostramos mais as nossas garras. Algumas coisas que estavam ainda contidas no primeiro, explodiram no ‘Supercarioca’, como a forte influência do samba rock do Jorge Ben, Hendrix, Tim Maia, Novos Baianos, o samba tradicional, Rolling Stones, Doors e por aí vai”, conta.

O isolamento da banda em uma cidade de Minas Gerais ajudou na criação desse clássico do rock brasileiro. O convívio diário entre os músicos e a possibilidade de trabalhar melhor as músicas, revelaram um grupo ainda mais coeso e criativo do que no primeiro álbum. “O ‘Supercarioca’ teve um processo de criação muito bacana. No carnaval de 1988, nós viajamos para uma fazenda em Baependi, Minas Gerais, para terminar as músicas que tínhamos esboçadas e criar outras. Foi muito bom. Esse processo criativo se reflete no resultado final de forma clara. O disco segue um roteiro quase cinematográfico, a partir de um conceito genial do Humberto”, relembra Romanholli.

O vocalista concorda e ressalta que a entrada do novo baixista reforçou a química que já existia. “O ‘Supercarioca’ já tem um conceito de disco, já pensamos melhor sobre esse formato pra não fazer só uma sequência de músicas em um vinil. Sonoramente, o álbum foi feito de forma mais interessante. A banda estava mais ‘banda’ e acho que a entrada do Luiz Romanholli foi fundamental para isso porque ele já tocava com o Abílio e o Gustavo há muitos anos”, analisa.

As influências e a experiência que o grupo tinha adquirido, no palco e no estúdio, fizeram com que o segundo disco demonstrasse, de uma forma mais direta, os vários gostos musicais da banda, como explica o baixista Romanholli. “Nós quatro escutávamos de tudo, desde pequenos. Não tenho dúvidas de que isso é consequência do fato de termos crescido em uma época muito rica para a música brasileira, os anos 1970, e em que as rádios ‘de sucesso’ eram mais ecléticas. Escutávamos Chic e Milton Nascimento na mesma emissora”, conta.

Uma das músicas mais marcantes do álbum é a trágica “Marlene”. Humberto Effe relembra como a música surgiu. “Ela começou a ser feita em um ensaio. A gente às vezes improvisava sobre uma ideia, um riff de guitarra, uma batida de bateria ou uma linha de baixo e ficávamos um bom tempo na mesma levada. Eu procurava improvisar uma melodia sobre aquilo. Depois, em casa com o violão, eu dava um formato de canção para aquela ideia, mas o arranjo e todas as nuances da música já haviam surgido no ensaio”, explica.

O trabalho de cada músico é saber encaixar a sua parte instrumental no todo da música, sem “atrapalhar” a sua harmonia. Romanholli explica como a linha de baixo foi composta. “Eu percebia a canção como um samba soturno e procurei encaixar o baixo nesse clima. A inspiração para a linha principal de baixo foi a música ‘Slave’, dos Rolling Stones. É uma faixa do disco ‘Tattoo you’, que eu escutava muito na época. ‘Slave’ e ‘Marlene’ têm a mesma onda. Acho uma das grandes interpretações do Humberto”, explica.

Uma das peculiaridades que distinguem os bons músicos da mesmice é a capacidade de soar diferente, de forma destacada, em cima de uma melodia. Gustavo Corsi conseguia isso sem esforço. “O que eu lembro é que eu queria soar o mais pesado e torto possível em cima daquele samba lento e meio blues. Lembro de muitos detalhes da gravação de guitarra. As camadas que eu fui gravando, alguns momentos em que sugeri que a guitarra fosse mutada para fazer contraste com as partes em que ela aparece…”, conta Gustavo.

Gravações são sempre cheias de detalhes e curiosidades. Muitas vezes o que é planejado sai de forma totalmente diferente no estúdio e, em algumas ocasiões, passa a fazer parte da música. “Tem um momento em que eu errei um trecho e, para chamar a atenção do produtor e dos técnicos, eu fiz um ruído na guitarra. Nos acostumamos com ele e esse ruído permaneceu na mixagem. Está lá em 1:56, logo depois de ‘Eu posso estar delirando’. É, inclusive, alto pacas”, revela Gustavo.

O texto da música, com em todas da banda, é muito bem construído. “Tanto risco, tantas coisas ouvia no meio da noite. Como um gato ninguém vê. Só você quando passa, quando passa. O que você sempre dizia não dá mais pra se dizer. O que você sempre dizia quase ninguém escutava. Agora coisas estão chegando pela sua contramão. O que você sempre dizia quase ninguém escutava”, diz a letra.

Humberto explica qual foi a ideia que ele quis passar. “A letra é bem vaga e misteriosa. Considero uma continuação meio soturna de ‘Bolero’, um pouco Nelson Cavaquinho. As músicas iniciais do ‘Supercarioca’ são todas subjetivas. Um personagem sozinho, ainda sem saber para que lado vai, tudo ainda está se formando… ‘Marlene’ está nesse contexto. O nome não tem nada a ver com ninguém. Às vezes batizo uma música como quem dá nome a um cachorro”, conta.

“Sangue” é, talvez, a música mais “violenta” do Picassos Falsos. Com uma introdução fantástica de bateria, seguida de um dos melhores riffs tocados por Gustavo Corsi, a canção é uma espécie de “ode apocalíptica”. “Estarei presente no final dos dias, estarei presente, estarei. Cantando, quem sabe, novas melodias que dos seus lábios ressuscitarei”, diz a letra.

O guitarrista relembra como a música surgiu. “O riff principal é do Zé Henrique tanto que, mesmo já não sendo da banda na época da gravação, ele levou o crédito de autor. É muito interessante como aquelas partes tão diferentes se encaixam. As passagens são tão radicais, que parecem editadas na mixagem. É um dos melhores sons de bateria que o Abílio já tirou e uma de suas melhores performances. Ele sempre usou muito bem os tambores”, afirma Gustavo.

Romanholli explica a sua visão sobre a música. “É uma carnificina de guitarra com o Abílio arrebentando na bateria. A frase de bateria que introduz a música, para mim, é um clássico. Eu tentei não atrapalhar e misturei funk/disco e The Who. A linha de baixo funky das partes sem voz é a minha favorita de todas as que eu fiz no Picassos. No fim tem um micro, ‘ou seria mico’, solo de baixo à la John Entwistle. Tocar ‘Sangue’ e ‘Marlene’ ao vivo eram sempre experiências incríveis”, afirma.

Humbero Effe explica o contexto da letra de “Sangue”. “Acho que é a nossa ‘Helter Skelter’. Sobre a letra e a melodia, é o nascimento de um personagem, de uma personalidade cheia de simbologia carioca, um ‘parangolé tijucano’. Pensei também em escrever algo que falasse da banda, da sua relação com o que era atual e o que era dito como tradição e passado. ‘Estarei presente no final dos dias, cantando quem sabe novas melodias que dos seus lábios ressuscitarei’, poderia ser um release do ‘Supercarioca’. A melodia bem imperativa, em tom de discurso, realça tudo o que há de tom carnavalesco e caótico na letra. A levada funk/samba do meio da música é muito Picassos Falsos”, explica.

Confira as músicas “Sangue” e “Bolero”, do disco “Supercarioca”, postadas pelo guitarrista Gustavo Corsi em seu canal no Youtube.

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