Controle. Nunca a humanidade esteve tão monitorada, submetida a escrutínio, análise e avaliação. Um monumental processo de registro de dados privados está em pleno funcionamento, e seu uso vai das mais inocentes estratégias publicitárias até a identificação de dissidentes políticos. E hoje tornou-se mais fácil do que nunca realizar tal monitoramento, uma vez que as redes sociais, conectadas aos smartphones, permitiram uma observação, em tempo real, de todos os movimentos, pensamentos, opiniões, gostos e padrões de consumo. Se informação é poder, os detentores dos dados mais íntimos de cada indivíduo se transformaram nas pessoas mais poderosas do mundo. E eles querem mais.
O armazenamento de um volume tão espantoso de informações, em escala global, poderia ser usado para encontrar a cura para muitas doenças, eliminar a pobreza mundial e tornar a vida na terra um paraíso. Porém, infelizmente, os controladores não possuem em seus corações (se é que haja um ali) os melhores interesses da humanidade. Por enquanto, o que temos visto é o uso das novas tecnologias para magnificação da fortuna e do poder.
O metrô de Moscou deu-nos um exemplo de como esse processo está se desenrolando hoje. Foi anunciado recentemente o fim do uso de bilhetes no transporte subterrâneo da capital russa. A novidade chegou com ares de grande benefício para os milhões de usuários semanais que passam pelas 241 estações da cidade, uma vez que evita filas e simplifica o processo de embarque. Para garantir tal “conforto”, foram instaladas nada menos do que 200 mil câmeras com sistema de reconhecimento facial, que liberam automaticamente a entrada de passageiros nas plataformas.
No entanto, o sistema, nomeado de Face Pay, trouxe um desdobramento não tão nobre. Através da tecnologia de monitoramento ostensivo, já foram presos cerca de 12 críticos ao governo, acusados de participar de manifestações favoráveis a líderes oposicionistas. Isso tem levado alguns grupos a criticar a tecnologia, uma vez que, por trás da proposta de garantia de segurança, a ferramenta pode comprometer a privacidade, uma vez que é capaz de identificar com quem a pessoa fala, analisar o círculo social de cada um e servir a interesses políticos.
Você pode achar tudo isso muito estranho, mais afeito a ficções distópicas, e se tranquilizar na suposição de que isso não chegou aqui ainda. É aí que você se engana. Vou contar uma história curiosa e esclarecedora, que teve um desdobramento recente, desfavorável para os controladores. Em abril de 2018, foi anunciado que alguns trechos do metrô de São Paulo começariam a utilizar sistemas de reconhecimento facial. No caso russo, a proposta trazia, supostamente, um esforço de segurança pública e de maior agilidade no acesso aos trens. Na capital paulista, entretanto, a ideia era avaliar a reação dos usuários perante propagandas exibidas nas estações. As publicidades, expostas em telas interativas nas portas das plataformas de embarque, seriam equipadas com pequenas câmeras capazes de interpretar as expressões no rosto de cada um que olhasse para as imagens.
Isso te lembra alguma coisa? Telas que, ao mesmo tempo, exibem imagens e filmam os espectadores? George Orwell ficaria abismado ao perceber a materialização das “teletelas” de sua obra-prima, o “1984”, em que o Grande Irmão controlava todos por meio desses monitores com câmeras embutidas, sempre em busca de dissidentes do sistema.
Bem, voltando ao caso paulista, em pouco tempo começaram a surgir preocupações com a novidade. Enquanto alguns levantavam a possibilidade de as informações serem utilizadas de forma prejudicial, outros, mais otimistas, buscavam tranquilizar os usuários, afirmando que as pessoas não seriam identificadas inicialmente, que os dados não seriam aplicados em desfavor dos indivíduos e que tal modelo já era usado ao redor do mundo para tornar o serviço mais eficiente. Seria muito bom se fosse verdade. Mas não foi o que concluiu o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), ao protocolar, ainda em maio de 2018, uma ação civil pública contra a concessionária que havia instalado as telas. O argumento era que o sistema havia sido inaugurado sem o prévio consentimento dos usuários, e não oferecia a possibilidade de impedir a exploração comercial de suas informações pessoais. O Instituto afirmou que, segundo a Lei Geral de Proteção de Dados, a gravação de imagens de pessoas dispersas na multidão somente poderia ser realizada com fins de segurança, e não com finalidade comercial.
Três anos depois, o desfecho da ação popular saiu, neste último mês de maio. O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a concessionária a pagar R$ 100 mil pela captação de imagens sem o consentimento dos passageiros. A concessionária afirmou que não armazenava os dados nem fazia o reconhecimento facial dos usuários, acrescentando que avaliaria os possíveis recursos cabíveis. Pode ter sido um alívio para aqueles que se preocupam com sua privacidade, mas um desdobramento difícil de imaginar ocorrendo na Rússia.
Você poderia pensar que, como o sistema foi implementado em 2018 – portanto, antes do início da pandemia e da obrigação de uso de máscaras em espaços públicos – ele estaria obsoleto, uma vez que, com o uso compulsório do protetor facial, não seria possível que as câmeras identificassem as pessoas. Quem usa smartphones com esse sistema já experimentou a desagradável situação de, dentro um shopping ou banco, não conseguir desbloquear o aparelho devido à máscara. Mas se engana quem pensa que a proteção no rosto impede o reconhecimento. No início deste ano, um estudo mostrou que as tecnologias de reconhecimento facial já evoluíram ao ponto de conseguir identificar uma pessoa mesmo com o rosto coberto. Se antes apenas 50% dos equipamentos conseguiam reconhecer alguém com parte da face protegida, os novos sistemas instalados em aeroportos mundo afora já conseguem fazer identificações mesmo assim, evitando a necessidade de retirar a máscara em público.
Os otimistas dirão que isso poderá reduzir drasticamente a criminalidade, quando todos os locais públicos estiverem equipados com câmeras de reconhecimento facial. É o mesmo argumento daqueles que dizem que a substituição do dinheiro físico pela moeda digital reduzirá os crimes, uma vez que tudo ficará registrado. Segundo o economista Robert Wenzel, uma moeda digital controlada pelo Banco Central americano poderia representar uma das medidas mais perigosas já tomadas por uma agência governamental. Isso porque possibilitaria não apenas rastrear as transações mas impedi-las por algum motivo. Segundo Wenzel, em termos de liberdade individual, a novidade representaria um enorme pesadelo.
Não seria esse um preço muito caro? Trocar a privacidade pela segurança? Você ficaria tranquilo em saber que alguém (ou alguma instituição, pública ou privada) armazenou todas as suas informações mais íntimas? Será que eles tratariam com carinho e respeito os seus dados pessoais? Eu também acho que não. Mas quer saber de uma coisa? Eles já possuem tais informações, e foi você mesmo que concedeu, com seu smartphone e seu computador. E agora? O que fazer? Não sei. Boa pergunta.
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