Ouça este conteúdo
As sanções internacionais contra a Rússia já começaram a gerar um perigo real de escassez de alimentos. Inclusive nos Estados Unidos, como o próprio presidente Biden alertou na semana passada. Entretanto, para Moscou, o esvaziamento das prateleiras pode ter uma consequência ainda mais profunda e estrutural.
Diante da ausência cada vez maior de produtos básicos, os russos começaram a estocar comida e artigos de primeira necessidade. O problema é que não são apenas as pessoas que estão fazendo isso, mas os próprios governos estaduais e municipais. E isso mostra um lado da estrutura do poder na Rússia que muitos desconhecem no Ocidente, e que foi revelado por uma observação recente trazida pelo analista político Kamil Galeev.
Segundo ele, quando imaginamos o governo de Moscou, geralmente projetamos Putin de um lado e as massas de outro. Mas não é exatamente assim que funciona. O presidente russo não tem um pingo de preocupação quanto aos prejuízos que as sanções têm causado ao cidadão comum. Isso porque, quando o povo está indignado, eles não voltam sua ira contra o líder máximo, mas em direção aos gestores locais, a saber, prefeitos e governadores, vistos como corruptos e insensíveis.
Por que o povo não direciona sua indignação para Putin? A mídia local, cada vez mais controlada pelo governo, construiu essa imagem de santidade ao redor do presidente. Para se ter uma ideia, quanto ao conflito na Ucrânia, os meios de comunicação colocam a operação russa naquele país como praticamente uma missão de paz com o fim de ajudar as populações minoritárias das regiões separatistas contra a opressão de Kiev. É por esta razão que, mesmo diante de uma queda acentuada em sua qualidade de vida, o povo não se rebela contra Putin. A culpa recai, por um lado, sobre as sanções ocidentais, vistas como injustas, e sobre os prefeitos e governadores, encarados como corruptos.
Sabendo que serão fortemente cobrados, os líderes locais começaram uma série de medidas para evitar a total quebra do abastecimento de comida em suas regiões. Por isso, estão estocando alimentos pesadamente e incentivando um retorno à agricultura de subsistência, que, no passado, ajudou o povo a enfrentar as crises mais severas. Hoje, porém, esse tipo de conhecimento não está disseminado na população mais jovem. A última geração russa que dominava as técnicas de produção local foram os boomers, nascidos entre 1946 e 1964. Os jovens de hoje não possuem conhecimentos mínimos sobre isso.
Esse contexto traz uma situação preocupante. Isso porque muitos prefeitos e governadores estão proibindo que sua produção seja enviada para as demais regiões do país, para evitar a escassez local. Para Kamil Galeev, isso pode representar o início de um processo que poderia conduzir a Rússia ao colapso. Como as autoridades locais estão começando a agir no melhor interesse de suas regiões, estocando sua produção, a medida acentuará a escassez nacional e poderá resultar numa quebra nas cadeias de suprimento. Isso poderia eventualmente comprometer a coesão nacional e gerar uma espécie de separatismo econômico. Algo semelhante com a queda do Império Colonial Espanhol, em que a divisão entre as lideranças locais e os peninsulares contribuiu fortemente para as disputas que levaram ao fim do regime.
Seria este o fim de Putin? Ainda não temos condição para saber. Entretanto, independente dos resultados, a Rússia não voltará ao que era no dia 23 de fevereiro de 2022, um dia antes de ser iniciado o conflito com a Ucrânia. Ou o presidente russo terminará a Operação Z como sendo a campanha mais humilhante da história de seu país desde a Guerra Russo-Japonesa, ou será alçado ao posto de autocrata incontestável, ao modelo de um Kim Jong-un, louvado por seu povo como o suposto libertador dos ucranianos da opressão de Kiev. Enquanto o resultado não chega, tanto no país invadido quanto na própria Rússia, o povo segue na luta diária em busca do básico para sua subsistência.