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Daniel Lopez

Daniel Lopez

Jornalista e teólogo, autor de ‘Manual de Sobrevivência do Conservador no Séc. XXI’. É doutor em linguística pela UFF

Geopolítica onisciente

A tecnologia do fim do mundo chegou (e você concordou)

Magnatas da tecnologia querem transpor a última barreira da privacidade (Foto: Britta Pedersen-Pool/Getty Images; Arif Hudaverdi Yaman/Getty Images; KENZO TRIBOUILLARD/Getty Images; Mike Cohen/Getty Images; Yuqing Liu/Business Insider)

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“Eu estava pensando em pedir uma comida japonesa e, quando abri meu celular, ele me sugeriu um vídeo sobre sushi. Será que o telefone está lendo meus pensamentos?”. Experiências assim estão se tornando cada dia mais comuns. Isso já aconteceu comigo, várias vezes. Alguns dias atrás, na hora do almoço, meu pai me sugeriu um vídeo que trazia uma palestra sobre como, no futuro, os smartphones seriam capazes ler nossa mente por meio da tradução de ondas cerebrais. Ele afirmou que o vídeo citava o físico Michio Kaku. Eu perguntei a ele como ele tinha chegado a este conteúdo. A resposta foi: “Não sei. Simplesmente apareceu a sugestão para mim. Isso é estranho, pois eu não pesquiso sobre esses assuntos”. O detalhe é que, neste mesmo dia, na parte da manhã, eu havia feito uma live sobre esse tópico, citando exatamente Michio Kaku como referência. E meu pai estava ouvindo minha palestra. De alguma forma, o aparelho dele captou o nome que citei na transmissão ao vivo e sugeriu um vídeo com base nisso. Como seria isso possível? Quais desdobramentos poderia haver de uma tecnologia como essa, tanto em termos mercadológicos como militares? Preocupante, não?

Hoje, o que sabemos com maior grau de certeza é que se tornou quase impossível interagir com qualquer tipo de tecnologia e não ser rastreado. Nossos telefones estão continuamente informando nossa localização, não apenas ao provedor de serviços, mas também a uma série de outros aplicativos instalados em nossos aparelhos. Eles sabem onde estamos em tempo real. Desligar o rastreamento não resolve muito, uma vez que essa ação não será válida para todos os programas funcionando em nossos aparelhos. Eles sabem, por exemplo, quando estamos perto de nossa lanchonete favorita. Por isso, naquele momento, mostram anúncios exatamente sobre aquele restaurante. Temos o costume de repetirmos sempre a mesma rota, de forma que o sistema conhece não apenas o trajeto cotidiano, mas também os horários que transitamos por ali.

O grande detalhe é que somos nós mesmos que treinamos diariamente nossos aparelhos a nos conhecerem por completo, o que oferece aos aplicativos a capacidade de nos ofertar bens e serviços que estamos precisando, e, mais do que isso, de prever nossos comportamentos, cruzando dados de nossa rotina diária, localização, horários e preferências. Isso tudo gera, por vezes, a falsa sensação de que os aparelhos estão lendo nossos pensamentos. Porém, há casos mais estranhos, que são mais difíceis de explicar.

Comecemos pelos mais fáceis. Ofereço mais uma experiência pessoal. Algum tempo atrás, eu estava jantando com amigos e conversamos sobre brigas entre surfistas brasileiros e havaianos (OBS: sou surfista, já fui, inclusive, competidor patrocinado). Quando fui dormir, peguei o celular para ver as últimas notícias e, para minha surpresa, o aplicativo me sugeriu exatamente um vídeo com relatos de brigas entre surfistas brasileiro e havaianos. Eu não havia pesquisado aquele tema no meu navegador, mas  apenas falado sobre. O aparelho escutou minha conversa, identificou o tema e indicou um vídeo relacionado? Tudo parece indicar que sim. E isso não é novidade.

Num interessante artigo, publicado no site de uma importante empresa de antivírus, temos a confirmação de que realmente os celulares escutam nossas conversas, e com nosso consentimento. Lembre-se que geralmente não lemos os termos listados sobre as atividades dos aparelhos. Mas está tudo lá. Você concordou. Por isso, não há, em tese, nenhuma ilegalidade na prática. A justificativa das empresas é que, escutando o que falamos, elas são capazes de nos oferecer serviços mais eficientes, adequados ao nosso gosto pessoal, além de estarem sempre atentas às demandas, que podem ser solicitadas, a qualquer momento, a assistentes virtuais, como a Siri, da Apple, e a Alexa, da Amazon.

Obviamente, você pode desligar os assistentes virtuais e não permitir que os diferentes aplicativos tenham acesso ao microfone do aparelho. Entretanto, a única maneira de garantir que você não será ouvido ou visto é colocar uma fita adesiva sobre a câmera e o microfone do celular. Alguns chegam até mesmo ao ponto de abrir o telefone e desligar os fios que ligam o microfone. Neste caso, para realizar ligações, eles precisam conectar um microfone externo.

Agora, a coisa vai ficando cada vez mais estranha. Vamos supor que você está usando um computador pela primeira vez. Fora da sua residência, de modo que ele não pode localizar sua casa e descobrir que é você que está ali. Você nunca fez login em nenhum de seus serviços, como e-mails ou redes sociais. Entretanto, após alguns poucos minutos de navegação, começa a ver aquelas mesmas publicidades que sempre aparecem em seu telefone pessoal. Como isso seria possível? Alguns especialistas explicam que certos anunciantes rastream mais de 150 “pontos de dados” em qualquer computador. Em geral, qualquer fato ou informação é um ponto de dados, no que tange à coleta de informações. O Oxford Languages, por exemplo, define “ponto de dado” como “um elemento identificável em um conjunto de dados”. Dessa forma, alguns serviços de anúncios mais avançados precisam de apenas 15 desses pontos de dados para diferenciá-lo de qualquer outra pessoa no mundo. Veja a que ponto chegamos.

Há, contudo, os casos mais “misteriosos”. Uma pessoa pensa num assunto, e logo em seguida recebe uma publicidade exatamente sobre aquele tópico. Percebam que é algo que não foi pesquisado no navegador, falado com ninguém ou mesmo fotografado pelo aparelho. Como explicar isso? Alguns justificam esses casos por meio da “ilusão de frequência”, também conhecida como “fenômeno de Baader-Meinhof”: você já estava recebendo sugestões sobre algo no celular e pensando sobre aquilo, mas, em determinado momento, acreditou que a “ideia” havia sido originalmente sua, e depois “captada misteriosamente” pelo aparelho. É uma boa explicação, mas incapaz de dar conta de todos as ocorrências relatadas.

Em fóruns de discussão online, um jovem relatou que havia terminado de assistir a 4ª temporada da série “Lúcifer”. No dia seguinte, ele estava pensando se iria haver uma 5ª temporada. Então, abriu o Google e digitou ''haverá'', e a primeira sugestão de pesquisa foi "haverá uma temporada 5 de lúcifer?". Estranho, não acha? Ele poderia estar desejando saber se haveria qualquer outra coisa. Como o aplicativo sabia que era exatamente aquilo que ele estava querendo buscar naquele exato momento? Havia questões semelhantes em outro fórum. Um homem estava conversando com sua esposa grávida, com desejo de comer um macarrão com queijo gourmet. Eles conversaram sobre isso no carro. Então a esposa pegou o telefone e pensou em buscar na internet qual seria melhor macarrão com queijo em Denver. Quando ela simplesmente digitou "melhor", a primeira sugestão de pesquisa foi "melhor macarrão com queijo em Denver". Neste segundo caso, ela comentou verbalmente com o marido, e o aparelho pode ter escutado. Mas, na primeira versão, o jovem apenas pensou. Como ele estava sozinho, ele não havia conversado com ninguém, e nem pensado em voz alta. O celular leu sua mente? Como explicar isso?

Em artigo recente que publiquei aqui, mostrei que as tecnologias que permitem traduzir ondas cerebrais em textos e frases já são antigas. Comentei sobre pesquisadores da Universidade de Oregon que, ainda em 2016, desenvolveram uma máquina capaz de não apenas ler pensamentos, mas de exibir imagens deles. Em 2019, cientistas da Universidade da Califórnia conseguiram transformar pensamentos em voz. Ano passado, membros do instituto Caltech desenvolveram um aparelho de ultrassom que consegue ler a mente de uma pessoa e, com isso, "prever" suas atitudes. Naquela ocasião, comentei: “Você já imaginou esse tipo de tecnologia nas mãos de líderes com sede de poder? As aplicações militares e geopolíticas de artefatos como esses são ilimitadas. Seria o sonho de todo tirano, e o pesadelo do cidadão vigilante”. É uma realidade assustadora. Mas essa tecnologia já estaria à disposição dos smartphones, mesmo sem o uso de eletrodos e aparelhos de ultrassom?

Uma matéria de 2020, do Wall Street Journal, trouxe uma reflexão interessante. Veja o título (em tradução livre do inglês): “Telefones que podem ler sua mente. Os anúncios direcionados poderão, em breve, mostrar o que você realmente quer antes de saber que queria”. O artigo aborda o tema como uma possibilidade futura. Mas ele foi publicado há 2 anos. Seria tempo suficiente? Simplesmente não sei. Talvez os magnatas do Vale do Silício saibam. Enquanto isso, continuo achando muito estranho as sugestões que meu celular oferece para mim, por vezes, sobre coisas que apenas pensei. Isso é muito preocupante, uma vez que, no final das contas, nosso cérebro é o único lugar onde podemos dizer que temos total segurança e total privacidade. Ou, talvez, deveria dizer: nosso cérebro já foi o último lugar onde...

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