O atentado ao Crocus City Hall em Moscou pode ter representado um ponto de virada nas tensões entre a Rússia e o Ocidente. Mesmo que as informações oficiais deem conta de que a autoria dos ataques foi de responsabilidade do Estado Islâmico Khorasan (EI-K), Vladimir Putin afirma que está preocupado em descobrir agora quem ordenou os ataques. Nas últimas declarações, o presidente russo insinuou que havia uma participação ocidental, talvez ucraniana (ou até mesmo norte-americana) nos atos. Ainda que seja muito difícil estabelecer quem seriam os mandantes, o caso já serviu para acirrar grandemente o nível de tensão global.
Ainda que Putin não consiga trazer provas de que os EUA estão por trás do ato, existe um grande grupo de analistas que sugere uma participação dos EUA na criação do Estado Islâmico, que assumiu publicamente a autoria. O senador americano Rand Paul, por exemplo, acusou os EUA de patrocinar indiretamente o grupo, com o objetivo de utilizá-lo como força extraoficial contra o regime sírio. A suspeita ganhou força quando, em setembro de 2016, a coalizão liderada pelos EUA contra Bashar al-Assad atacou soldados sírios que batalhavam contra o ISIS, num suposta ajuda do grupo extremista. Recentemente, o EI-K foi responsável pelo ataque que deixou 84 mortos no Irã, no dia 4 de janeiro deste ano. Os alvos escolhidos pelo EI-K levam os analistas mais atentos a perceber que sua quase totalidade são opoentes dos Estados Unidos. O próprio ex-presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, já afirmou que o Estado Islâmico é uma ferramenta dos EUA.
Eu, pessoalmente, acho o mais estranho o fato de o lamentável atentado ao Crocus City Hall lembrar em muito o contexto em que Putin chegou ao poder.
A coisa vai ficando estranha quando aprendemos que os EUA haviam alertado Moscou sobre a possibilidade de algum tipo de atentado. Putin acabou interpretando o alerta como uma espécie de “afronta”. Porém, agora que o desastre aconteceu, algumas hipóteses mirabolantes começaram a surgir na internet. Por um lado, alguns defendem que Putin fez “vista grossa” com os alertas dos EUA, uma vez que ele poderia usar um evento como esse como justificativa para aumentar sua ofensiva contra o ocidente. Por outro lado, há aqueles que sugerem a ideia de que o atentado foi indiretamente incentivado pelos EUA como forma de uma provocação contra Putin, para levá-lo a tomar uma atitude impensada contra a Ucrânia ou outro país da OTAN. Isso justificaria o acionamento do artigo 5 da aliança, segundo o qual, se um dos 32 países for atacado, os demais membros são obrigados a ajudá-lo. Muita especulação, mas nem todas desprovidas de alguma base.
Eu, pessoalmente, acho o mais estranho o fato de o lamentável atentado ao Crocus City Hall lembrar em muito o contexto em que Putin chegou ao poder. O ocorrido no último dia 22 configurou o ataque terrorista mais fatal acontecido em Moscou desde as explosões contra apartamentos russos em 1999, à véspera de Putin participar de sua primeira disputa presidencial. Naquela época, Putin era complemente desconhecido, apesar de contar com o apoio de Boris Yeltsin, do Kremlin e da FSB (antiga KGB). Seu concorrente era o antigo primeiro-ministro Yevgeny Primakov, à época, o político mais popular da Rússia. A missão de Putin era quase impossível. Apenas algo muito fora do normal poderia dar a ele a vitória contra um concorrente 20 vezes mais popular. Lembrando que, na ocasião, Putin contava com apenas 3% das intenções.
Mas algo mudou tudo. Quatro atentados terroristas aconteceram na Rússia em setembro de 1999. Isso levou o recém nomeado primeiro-ministro Vladimir Putin a liderar uma rápida e vitoriosa ofensiva contra os chechenos (apontados como responsáveis pelos ataques). O conflito ficou conhecido como a Segunda Guerra da Chechênia. Como os atentados foram feitos contra prédios residenciais comuns, havia um clima nacional de medo, que foi encerrado com a vitoriosa resposta de Putin, que o levou de um desconhecido a herói nacional.
Os ataques de 1999 que conduziram Putin ao poder teriam sido, na verdade, operações de bandeira falsa realizadas pela FSB, e não de responsabilidade dos separatistas chechenos.
Entretanto, a investigação dos atentados foi recheada de mistérios. Houve duas investigações. Uma oficial (que concluiu que a autoria foi de fato de responsabilidade dos chechenos), e outra independente, liderada pelo vice-presidente da Duma (a câmara baixa russa), Sergei Kovalev. Esta segunda investigação gerou eventos controversos. O governo se recusou a responder às perguntas dos investigadores. Dois membros importantes da comissão, Sergei Yushenkov e Yuri Shchekochikhin, tiveram mortes suspeitas, o primeiro foi assassinado perto de sua casa em Moscou, em 2003. O segundo faleceu de uma misteriosa doença, que muitos apontam como envenenamento. Além disso, Mikhail Trepashkin, advogado da comissão, foi condenado a 4 anos de prisão por supostamente revelar segredos de Estado durante as investigações.
O mais estranho, porém, foi um suposto atentado que foi “prevenido” à época, que ficou conhecido como o “Incidente de Ryazan”. Naqueles meses, o país estava aterrorizado. Todos ficaram paranoicos, com medo de seu prédio ser o próximo a ser atacado. Os moradores estavam constantemente vasculhando o porão de seus prédios em busca de explosivos. Foi então que, no dia 22 de setembro de 1999, Alexey Kartofelnikov, habitante da cidade provincial de Ryazan, percebeu uma movimentação estranha em frente ao seu prédio. De um carro desconhecido estacionado no local, homens estranhos saíram e levaram vários sacos brancos para o subsolo do edifício. Lembrando que, segundo a investigação oficial, os explosivos teriam sido produzidos numa fábrica de fertilizantes, trazendo uma mistura de pó de alumínio, nitroglicerina e açúcar. A aparência era de sacos de açúcar.
Essa foi a impressão de Alexey Kartofelnikov: de que se tratava de sacos de açúcar. Quando os estranhos homens foram embora, os habitantes acionaram a polícia. Foi neste ponto que a coisa fica estranha. Os investigadores encontraram muitos sacos grandes de açúcar no porão, mas eles traziam consigo um detonador. Por isso, o prédio foi evacuado, uma vez que a primeira informação oficial era de que se tratava realmente de explosivos. E foi assim que o caso foi primeiramente reportado no noticiário nacional. Putin chegou a agradecer os moradores da cidade por sua terem evitado mais um desastre.
Porém, tudo mudou quando, na mesma noite, a polícia prendeu dois suspeitos. Mas o problema é que eles se identificaram como agentes da FSB. Neste momento, uma ligação de Moscou chegou, ordenando que os homens fossem libertos imediatamente. Neste momento, a versão oficial da história mudou. Patrushev, que assumiu o lugar de Putin como diretor da FSB, apresentou a nova explicação para o ocorrido, dizendo que os sacos traziam apenas açúcar. Os agentes teriam colocado os sacos no porão do prédio apenas como um teste, um exercício, para verificar a atenção dos moradores.
A versão foi contestada por Alexander Litvinenko, um tenente-coronel do exército russo e espião da FSB. Ele acabou escrevendo dois livros afirmando que os ataques de 1999 que conduziram Putin ao poder teriam sido, na verdade, operações de bandeira falsa realizadas pela FSB, e não de responsabilidade dos separatistas chechenos. Litvinenko acabou conseguindo um asilo político na Inglaterra, mas foi envenenado em 2006.
O atual caso do Crocus City Hall me trouxe essa lembrança do final dos anos 90. E torço para que seja exatamente isso: apenas uma lembrança.
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