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Como homenagem póstuma a Michel Foucault, o filósofo francês Gilles Deleuze escreveu um livro chamado simplesmente “Foucault”. Para além de mero comentário à obra do autor de “Vigiar e Punir”, Deleuze propõe novos conceitos e teorias ao revisitar os pensamentos de seu conterrâneo. No final do volume, há um anexo chamado “Sobre a morte do homem e o super-homem”, que inspirou o título do presente artigo. A ideia defendida no texto é que, na formação histórica clássica, vigorava a ideia de Deus, e o homem era entendido como derivação do divino. A ordem social era construída com base nessa premissa. Porém, quando a ideia de Deus começa a sair de cena, a ideia de homem precisou ser redefinida.
Contudo, a nova ideia de homem já nasce frágil, e com os dias contados. O humanismo moderno não duraria muito, e a pós-modernidade daria fim à razão iluminista. A ideia de humano passa a ser uma ponte para algo além, o “além homem”, ou o “super-homem”, o homem sem limites, liberto das amarras do paradigma judaico-cristão, pautado única e exclusivamente por sua vontade de potência.
Soa como um processo libertador. Parece tudo muito lindo no papel, mas sabemos que alguns doidos se inspirariam em pensamentos como esses para sustentar a ideia de que haveria um grupo superior aos demais, com direito de subjugar os “inferiores”. Dostoievski parece ter antevisto tal problema, deixando um alerta, em “Crime e Castigo”, sobre as consequências de um homem que se enxerga acima do bem e do mal, e que orienta suas ações meramente com base na busca pelo poder. Geralmente, o fim é trágico, para ele e para a sociedade que o cerca.
Hoje, o fornecedor de sentido social que está em decadência é a mídia tradicional. Ela tem a capacidade de dar significado ao aparente caos do mundo, aos fatos aleatórios que se sucedem, às contingências, estranhezas, injustiças e imprevistos. Com base nessa reflexão, pergunto: da mesma forma que o declínio da ideia de Deus obrigou o homem a reinventar-se, o ocaso da mídia tradicional também traria um vácuo de sentido para a sociedade, abrindo caminho tanto para liberdades quanto para extremismos?
Ensaio aqui uma resposta restringindo a reflexão ao jornalismo pensado enquanto mídia tradicional. A partir do entendimento de que o trabalho jornalístico se configura em uma atividade de produção de sentidos (e não como mera reprodução ingênua da realidade), o jornalismo se mostra como uma atividade simbólica, cuja tarefa é apontar a realidade segundo pontos de vista específicos. Em sua tarefa de construção da notícia, o jornalismo funciona como um dispositivo de construção da própria realidade.
O jornalismo também atua como filtro para a realidade, assim como instrumento de mediação entre os diversos campos sociais. João Esteves, no livro “A Ética da Comunicação e os Media Modernos”, define campo social como “o espaço social onde os mais variados campos do conhecimento guardam, entre si, relações múltiplas, em que cada um defende seus pressupostos”. Neste âmbito, as diversas mídias desempenharam até aqui papel de grande importância, já que estabelecem essa mediação entre os diversos grupos e garantem a visibilidade social e aproximação entre os múltiplos campos.
Mas o problema é que a mídia tradicional - este grande mecanismo de construção de sentido - está em declínio, perdendo espaço para as novas plataformas midiáticas. Há um duelo declarado entre o modelo clássico (gerador de sentido) e as novas tecnologias. Enquanto isso, o cidadão comum fica no meio do fogo cruzado tentando interpretar, por conta própria, a realidade ao seu redor.
Do embate entre a mídia tradicional e as novas mídias, poderá prevalecer uma ode à liberdade ou um culto à opinião única. Enquanto o modelo clássico tenta desqualificar o novo, este contesta a isenção do primeiro. Quem vencerá? O pensamento oficial ou a diversidade de opiniões? Há dois caminhos possíveis, mas temos já elementos suficientes para arriscar dizer que o movimento pendeu para um dos lados, e infelizmente o menos amistoso.