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A questão do barreado

Felipe Lima (Foto: )

Num belo sábado ensolarado, depois de botar no papel a paisagem de Antonina, a nossa trupe de aquarelistas foi surpreendida com um barreado feito em casa, sem panela de pressão, com a receita, o tempero e as mãos tradicionais de dona Lita Felisbino. Os mais jovens, extasiados com a abertura da tampa da panela de barro envolta na farinha, não deixaram de perguntar: “Afinal, o barreado nasceu em Antonina, Morretes ou Paranaguá?”

A gênese do “púcaro caiçara” é uma dúvida proveniente dos tempos em que se discutia o sexo das ostras e mariscos. Entre tantas discutíveis questões que fazem do barreado um prato especialmente temperado para se jogar conversa fora, algum tira-teima não pode faltar ao fim da sobremesa.

A polêmica origem do barreado não cabe aqui neste espaço, pois vem dos tempos em que Auguste de Saint-Hilaire percorreu o Paraná, em 1820. Muito bem recebido na Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, ao se despedir para tomar o rumo da Graciosa, o naturalista francês solicitou a indicação de alguma pousada onde fosse servida pelo menos uma comida típica do Litoral. Além de fornecer ao viajante certas orientações sobre a descida da serra, o capitão-mor recomendou: “De Porto de Cima, passando por Morretes e Antonina, até chegar a Paranaguá, o senhor vai encontrar um punhado de boas pousadas onde servem o barreado, prato típico dos litorâneos. Porém, acautele-se, senhor: existe uma recente rixa entre eles quanto à paternidade do cozido de carne na panela de barro, enterrada na terra e envolta em folhas de bananeira”.

Em Morretes, Antonina e Paranaguá – da mesma forma que em Santa Felicidade a cor da polenta confronta os seguidores da branca e da amarela –, as questões do tomate e do pirão dividem os estudiosos do “púcaro caiçara”.

Para a jornalista Rosy de Sá Cardoso, o tomate no barreado é uma heresia. Jamais os nativos ousaram botar tomate no barreado. Descendente das principais praças, ruas e avenidas de Curitiba, Rosy tem razões históricas para afirmar que o ketchup virou uma epidemia mundial! Para não falar da batata frita, outra praga desta civilização do sobrepeso.

Tem fundamento a heresia. Apesar de ser originário da América Central e do Sul, o Lycopersicun esculentum não pode estar nas origens do barreado, por um simples motivo: somente no século 19 o tomate passou a ser consumido e cultivado. Primeiro na Itália, depois na França e na Espanha. Inicialmente, o tomate era tido como venenoso pelos europeus e cultivado apenas para efeitos ornamentais, supostamente por causa de sua conexão com as mandrágoras, variedades de solanáceas usadas em feitiçarias. Os europeus que retornavam da América levaram ao Velho Mundo a fruta vermelha, que imaginavam ser venenosa.

Além de uma heresia, o tomate é um veneno para o barreado, dizem os ortodoxos da escola de dona Lita Felisbino. Só foi incorporado à receita depois das invasões bárbaras no Litoral, quando passaram a servir o barreado com camarão abraçadinho. Atualmente, alguns puristas já admitem o tomate, conquanto a receita seja do saudoso Luiz Alfredo Malucelli.

Quanto à questão do pirão, feito com farinha de mandioca e o caldo do barreado, a controvérsia teria começado em Porto de Cima. Contam que um certo prefeito de origem italiana tinha o apelido de Pirão e, com justa razão, não gostava nem um pouco da alcunha. Criado na base da polenta, o bom carcamano odiava pirão. Ficava enfurecido com a gozação que acontecia na hora de se fazer o pirão do barreado.

Candidato a prefeito, num comício em São João da Graciosa o vulgo Pirão subiu no palanque com um facão à mostra, para sinalizar que não iria levar desaforos, muito menos o apelido, para casa. E começou: “Povo de…”. E, lá do fundo, berrou o gaiato: “Farinha!”. De orelha em pé, o italiano reiniciou o discurso: “Povo de…”. Do outro canto da praça, outro gaiato gritou: “Água quente!” No ato, o candidato, injuriado, puxou do facão e ameaçou os gaiatos: “Se misturar, eu mato!”

No Paraná, assim como as mágoas acumuladas não conseguem pacificar pica-paus e maragatos, a questão da gênese do barreado não vai terminar nunca. Dessa maneira, depois do generoso almoço na casa de dona Lita Felisbino, lavamos as mãos para concluir à maneira de Pilatos: Antonina, Morretes ou Paranaguá, não importa. O barreado nasceu da fome e da vontade de comer, fruto da imaginação criadora de uma índia carijó do Litoral paranaense.

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