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Era uma vez na Copa

Arte: Felipe Lima (Foto: )

Com muito esforço, há quem compare a Copa do Mundo de 1970, no preto e branco da ditadura militar, com esta Copa do Mundo, em pleno colorido da democracia. Tanto ontem quanto hoje, tanto a esquerda quanto a direita tentam fazer do futebol um cenário para acobertar as nossas misérias políticas.

Como diz Dadá Maravilha, o herói coadjuvante da seleção do México, “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. De um lado do campo, a tradicional camisa amarela utilizada pelos “golpistas” nas manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff. Do outro lado, o “rebanho” de Luiz Inácio da Silva com uma versão “vermelho mortadela” para o agora odiado uniforme oficial da CBF.  Se esse não é um país sério, então só pode ser risível.

Nos Anos de Chumbo, passei por duas memoráveis Copas do Mundo, uma dentro e outra fora do quartel. Em 1970, como soldado raso no extinto quartel da Praça Rui Barbosa, em Curitiba, com a tropa formada no pátio a Ordem do Dia era enaltecer o regime militar. Como se os feitos em campos de futebol fossem uma consequência do bandeiroso Ordem e Progresso, todos os brasileiros deveriam sair às ruas com as cores nacionais. Sintonizados com a marchinha do “país que vai pra frente”, entoada com orgulho dentro e fora dos quartéis. Principalmente dentro, nas doutrinações da caserna. “Brasil: ame-o ou deixe-o!” – pregava o sargento dentro da guarita. “Ameixas: ame-as ou deixe-as!”, murmurava Paulo Leminski no lado de fora.

Com o AI-5 nas bancas de revistas, na Copa de 1970 o nosso álbum de figurinhas continha os seguintes figurões: Mário Andreazza, Jarbas Passarinho, Alfredo Buzaid, João Figueiredo, Leitão de Abreu, Adalberto Barros Nunes, Hygino Corsetti, Haroldo Leon Peres, Reis Velloso, Orlando Geisel e Ernesto Geisel. Emílio Garrastazu Médici era a figurinha carimbada, Delfim Netto a figurinha difícil.

Ainda sob o tacão dos generais, com o repórter Amaral Neto batendo continência numa tevê Sanyo 26 polegadas que o João de Pasquale havia acabado de instalar no seu restaurante do Passeio Público, assistimos à Copa do Mundo de 1974 ao lado de uma trupe de cartunistas que participava de uma mostra coletiva de humor. Sem nenhum mecenato do governo, solenemente ignorados pela cultura oficial, estavam expondo no Teatro do Paiol alguns dos mais celebrados cartunistas da imprensa nanica. Nomes que estavam em ascensão, como os paulistas Angeli e Laerte, os gaúchos Santiago e Edgar Vasques, mais os guerrilheiros paranaenses armados de tinta nanquim até os dentes.

Postados numa longa mesa formada ainda por jornalistas, escritores, atores e demais intelectuais, a princípio aqueles ortodoxos inimigos da ditadura faziam de conta ignorar solenemente o aparelho de televisão do Bar do Pasquale. Futebol era o ópio do povo. Mais importante que o embate entre as quatro linhas que se desenrolava na Alemanha, o assunto preferencial daquela confraria de esquerda era o álbum de figurinhas da oposição democrática à ditadura: Miguel Arraes, Paulo Brossard, Euclides Scalco, José Richa, Teotônio Vilela, Darcy Ribeiro, Alencar Furtado, Maurício Fruet, Franco Montoro, Marcos Freire e dom Helder Câmara. Ulysses Guimarães era a figurinha carimbada, Leonel Brizola a figurinha difícil.

Se não me falha a memória, antes da partida em que o Brasil seria eliminado pela Holanda, o técnico Zagallo havia afirmado que o Brasil desconhecia aquela tal de Laranja Mecânica. O futebol brasileiro, até então, só tinha conhecimento da laranja baiana. Assim que começou a partida, silêncio na mesa dos cartunistas e agregados. De olho na telinha, aos 40 minutos do segundo tempo todos se voltaram para o escritor e teatrólogo Manoel Carlos Karam, que – para alívio geral – foi o primeiro a ter a coragem de puxar do bolso da camisa a sua tabelinha com os jogos da Copa do Mundo. O segundo a exibir sua tabela foi o já então consagrado cartunista Edgar Vasques. Em sequência, outros mais sacaram de suas canetas e assim, na santa paz da consciência, anotamos o resultado final da peleja: Holanda 2 x 0 Brasil.

Se me perguntarem agora se há alguma coisa em comum entre a Copa do Mundo da ditadura e esta Copa do Mundo da corrupção, tenho a dizer que sim: a tabelinha dos jogos. Daquelas pequenas e dobráveis, para caber no bolso da camisa.

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