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Leituras do cárcere

Ilustração: Felipe de Lima Mayerle (Foto: )

Nestes tempos estranhos, melhor parafrasear o que dizia o filósofo Jean-Jacques Rousseau: “Não julgue (não se coloque no lugar do juiz Sérgio Moro) e você nunca estará errado”. Inclusive quando acusam Luiz Inácio Lula da Silva de nunca ter lido um livro inteiro na vida.

Desde o dia 7 de abril, ao se acomodar numa sala especial na sede da Polícia Federal em Curitiba, o farnel de leitura do mais ilustre prisioneiro da República de Curitiba é respeitável, próprio de uma líder carismático preocupado com os destinos da humanidade: A elite do atraso – da Escravidão à Lava Jato, em que o autor, Jessé de Souza, desenvolve a tese de que todos os males do Brasil decorrem do sistema escravocrata que vigorou no país até o século 19; em seguida leu com muita atenção Quem manda no mundo, do filósofo e linguista norte-americano Noam Chomski; e, segundo os senadores que o visitaram, Lula estava debruçado nos escritos de Yuval Noaj Harari, Homo Deus, uma obra sobre ciência, história e filosofia para entender quem somos e descobrir para onde vamos. Ao contrário do que possa parecer, Homo Deus não é a biografia de um metalúrgico que chegou à Presidência da República.

Felizmente, nas atuais circunstâncias, beber ou não beber não é a mais a questão. Os tragos do ex-presidente já passaram em julgado, pelo menos é a impressão que nos passa com suas atuais leituras do cárcere. Quando Lula bebia e a biblioteca do Palácio da Alvorada não tinha muita serventia, enviei ao presidente e ao seu secretário particular, Gilberto Carvalho, alguns exemplares do meu livro Botecário – Dicionário Internacional de Boteco. Com dedicatórias formais, chegaram ao Palácio do Planalto pelas mãos de uma curitibana que lá trabalhava.

O livro consiste de histórias e estórias de botecos, com perguntas básicas para se frequentar os bares do planeta, em 30 idiomas. Inclusive o latim, porque no Além há de ter um boteco em nome Dele. Traduzir para o latim um dicionário técnico de boteco não é tarefa fácil para os viventes. “Quid” – o ponto difícil – é que não há como saber, por exemplo, se nos campos celestes se cultiva a cevada e, por conseguinte, se os agraciados com a Graça Divina têm o privilégio de apreciar um chope dos deuses.

Na página de rosto da edição com 132 páginas e formato de bolso, a minha caricatura do presidente junto a um copo d´agua, com a dedicatória: “Ao companheiro Luiz Inácio Lula da Silva, ofereço este Botecário como contribuição ao chefe de Estado em seus périplos internacionais.”

Alguns dias depois, recebemos um telefonema em nossa casa: era Gilberto Carvalho. Em nome do presidente, o secretário agradeceu o envio dos livros, contou que Lula tinha se divertido muito com a leitura e solicitou mais exemplares, pois o último restante foi confiscado pelo então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos: “Justamente o meu exemplar com dedicatória”, disse Carvalho. Enviei mais alguns exemplares daquele livro que, dias depois, foi a leitura de bordo do presidente em viagem oficial ao Japão.

Quem atendeu o telefone e recebeu os agradecimentos do secretário particular foi minha mulher, Maria Luiza (Maí) Nascimento Mendonça, conhecida de Gilbertinho desde os tempos do combativo jornal católico Voz do Paraná, nos idos da ditadura. Maí era editora daquele semanário de resistência e membro da Comissão Justiça e Paz; Gilberto Carvalho era um jovem quase padre, colaborador do jornal e membro ativo das comunidades de base que atuavam na periferia de Curitiba. Na época eu era o chargista da Voz do Paraná, conhecia Gilberto apenas de vista, e, naquele final de manhã de sábado, não estava em casa para receber os cumprimentos de Luiz Inácio porque, “por supuesto”, o autor do Botecário se encontrava no boteco.

Gilberto Carvalho sempre foi uma pessoa muito gentil. Ao se despedir de Maí, insistiu que eu retornasse a ligação para sua casa, ou gabinete. Infelizmente, não retribuí a gentileza porque, logo em seguida, o barítono Roberto Jefferson botou a boca no mundo para interpretar a tragédia do “Mensalão”. No olho do furacão, o telefone de Gilberto Carvalho não haveria de estar disponível para amenidades.

Nesses dias de ira, é preciso que se diga: mesmo com o circo pegando fogo, Lula não mandou palhaços e chargistas à fogueira. Que FHC não nos ouça. Mas nunca, em tempo algum, um presidente brasileiro foi tão caricaturado nos mais diversos meios de comunicação, sem perder o bom humor e o rebolado.

Portanto, acima de qualquer julgamento, um brinde ao enclausurado Luiz Inácio Lula da Silva, agora um reconhecido leitor.

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