| Foto: Felipe Lima

Em suas memórias romanceadas no livro recém-lançado Vim, vi e venci, o ex-governador Paulo Pimentel podia ter acrescentado um capítulo dedicado às suas insólitas relações com o General Picasso, o pintor e comandante militar que muito frequentou as paredes do Palácio Iguaçu durante sua gestão.

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O episódio que não foi contado com nomes e ilustres sobrenomes de todos os personagens da época está no meu livro Maria Batalhão – Memórias póstumas de uma cafetina, uma ficção histórica recolhida entre os lençóis da Curitiba encabulada, risonha e franca do século passado.

Naqueles tempos estranhos da ditadura, ninguém vendia ou produzia mais quadros em Curitiba do que o general Picasso. Inspirado, ia para a Praça Tiradentes pintar sentado num reforçado banquinho, com um cavalete, dois sargentos e um cabo. Enquanto os sargentos montavam guarda na retaguarda, o cabo lavava os pincéis.

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O generalato para ele era um bico: ganhava mais com o pincel que com a espada. Numa de suas momentosas exposições, General Picasso chegou a vender 61 metros de pinturas para políticos, empreiteiros e empresários, além de quase 20 metros de paisagens adquiridas pelo governo do estado a preços da galeria Sotheby’s de Londres, cujas negociações duraram dois meses.

General Picasso sempre foi de cumprir à risca seus compromissos

Com o seu sotaque acariocado, o general telefonou para o Palácio Iguaçu: “Governador, estamos assombrados com o editorial de hoje no jornal do Rebordozo. O jornalista botou o dedo na ferida. Foi uma bomba!”

“General, são intrigas da oposição! O senhor conhece os métodos do jornalista Rebordozo.”

“Mesmo assim, governador, repercutiu muito mal aqui no quartel-general. Façamos o seguinte: quarta-feira à tarde, na folga da tropa, vou passar aí no Palácio para uma conversa sobre o assunto, reservadamente. Positivo?”

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General Picasso sempre foi de cumprir à risca seus compromissos. Compareceu ao gabinete do governador naquela quarta-feira à tarde e nas seguintes, sempre com o jornal do Rebordozo embaixo do braço: “O editorial de hoje foi mandado para o SNI (Serviço Nacional de Informações)”.

“General Picasso, alguém do QG mandou também para Brasília a ficha desse jornalista Rebordozo?”

“Essa questão não está na ordem do dia. No momento, o Estado-Maior está preocupado com a tal compra de deputados em troca de cartórios pelo Paraná afora.”

Suposta compra, general! Saiba o general que esse achacador não publica nossas respostas.”

Sentindo-se acuado, o governador resolveu contra-atacar: “Minha Casa Militar sabe de fonte segura que a decoração do seu gabinete no quartel-general foi superfaturada. E a roubalheira no almoxarifado da 5.ª Região Militar é comandada por um coronel de sua confiança.”

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“Quero provas!”, respondeu o general. “Também quero as minhas!”, e o governador encerrou a conversa que poderia desandar para um famigerado IPM (Inquérito Policial-Militar).

Se jornal serve para embrulhar peixe – pensou o governador –, por trás daquele palavrório impresso que o general lhe trazia semanalmente alguma coisa não estava cheirando bem. Apesar da baixíssima tiragem, o jornal do Rebordozo só circulava no Centro Cívico. Mesmo assim, cada um daqueles editoriais ao estilo de Carlos Lacerda fazia o estrago de uma bala perdida.

Com isso, o governador convocou uma reunião de emergência com o secretário de Fazenda, o chefe de gabinete e o secretário de Imprensa, o primeiro a falar: “À maneira da máfia, Rebordozo só sustenta o jornal para vender proteção. Conheço bem os métodos desse extorsionário. Pelos meus cálculos, uma boa mesada e mais um gordo papagaio no Banco do Estado liquidam a fatura e não se fala mais nisso”. O secretário de Fazenda nem precisou falar, somente anotou os montantes. O governador bateu o martelo e no ato seguinte o secretário de Imprensa marcou o cafezinho amigo com o jornalista.

Dias depois do cessar-fogo, acertada a mesada e assinado o papagaio a fundo perdido, o editorial do Rebordozo se redimiu com loas ao governo. Cheio de si, bem cedinho o governador mandou comprar 50 exemplares do jornal, botou a pilha no Ford Galaxie e o motorista tocou para a casa do General Picasso: “Ora, vejam! A que devo tanta honra assim tão cedo? Sente-se para o café, governador! Tenho uma broinha de fubá da Lapa”.

“Obrigado, general. Graças ao seu empenho, o caso está resolvido. O jornalista Rebordozo o admira tanto que só aceitou encerrar os editoriais caso o governo adquirisse 30 obras da sua próxima exposição para o acervo do palácio.”

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“Minhas obras foram compradas pelo Palácio do Governo sem eu saber? Não estou entendendo!”

“Uma pequena troca de gentilezas, general. Gentilezas!”

“Agora o senhor me deixou constrangido, governador! Minha vida na caserna é uma coisa, minha vida artística é outra. O Rebordozo está querendo prestígio à custa do meu nome! Vou mandar prender esse filho da puta!”

“Agora é tarde, general! O filho da puta já descontou o cheque da minha conta pessoal!”

No dia seguinte ao encerramento da grande exposição do General Picasso, a secretária do governador teve um chilique. O palácio tremeu com o desembarque de meia dúzia de soldados no gabinete do governador. Foi uma correria, os mais afoitos começaram a limpar a gaveta e, depois de a secretária ser acudida com um copo de água com açúcar, o cabo do Exército disse a que veio: “Temos ordens para pregar os quadros do general nas paredes do Palácio. Podemos começar por onde?”

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